Friday, March 03, 2006

Vanguarda e R&B: A Música de Ornette Coleman

Em 1959, ao abrir uma série de concertos no famoso clube nova-iorquino Five Spot, (texto escrito para a colecção "Let's Jazz In Público", Fevereiro de 2005)

Ornette Coleman chamou a atenção do mundo do jazz. Aparecendo a tocar num saxofone de plástico branco, com uma sonoridade estranha e uma linguagem musical desconcertante, baseada num suporte temático aparentemente simples, quase infantil, era acompanhado por Don Cherry no seu pocket trumpet, e uma secção rítmica composta por Charlie Haden no contrabaixo e Billy Higgins na bateria. A principal novidade era que os improvisos não obedeciam a uma série de acordes pré-definidos, como seria de esperar na época.

Com o succès de scandale que costuma marcar as revoluções artísticas, Ornette fazia história. O seu estilo não tinha precedentes, e tanto o público como a crítica não sabiam muito bem como reagir. A sua música era inclassificável. As opiniões sobre esta música oscilavam entre dois extremos: Leonard Bernstein considerou-a genial, Roy Eldridge uma fraude.
Ornette não era o único a explorar esta via. Outros, como Cecil Taylor, eram ainda desconhecidos, mas trilhavam o mesmo caminho. Claro que o estilo não nasceu do nada. Antes de ir para Nova Iorque o seu grupo teve vários anos de experimentação, em que foram reequacionados todos os aspectos do jazz, como ritmo, melodia, harmonia, sonoridade, fraseado, estrutura. A esta música, que lhe surgia naturalmente, chamaria "free jazz".

Os limites da sujeição aos acordes são explicados pelo próprio: "Using changes [série de acordes] [...] lets the audience know what you're doing. But that means you're not playing all your own music, or all the music you're playing's not yours".
Depois de utilizar vários pianistas, como Don Friedman, Paul Bley e Walter Norris, decidiu-se por retirar o piano do seu grupo para ter mais liberdade melódica, sem restrições harmónicas. Com o baterista Ed Blackwell, de Nova Orleãs, no lugar de Billy Higgins, o grupo apura o seu estilo, com o ritmo mais solto, e mais interactivo com o solista.

A secção rítmica não se limita a acompanhar. Tem uma responsabilidade acrescida no resultado final, do ponto de vista da interacção musical. Desta forma, obrigou os seus músicos a repensar a abordagem aos seus próprios instrumentos.
Para Ornette a expressão pessoal é o mais importante. O que ele gostava mais era de ver alguém fazer aquilo que melhor sabia, fosse em que área fosse. Sobre um malabarista que ele observou em frente ao Radio City Music Hall, em Nova Iorque, comentou mais tarde que fora a obra de arte mais bela que alguma vez tinha visto.

O seu estilo é muito marcado pela sua passagem por bandas de rhythm & blues, o que torna a sua música menos abstracta, mais alegre e rítmica, o que permite uma leitura mais fácil, apesar da complexidade da gramática musical. Uma afinação muito pessoal, utilização de multifónicos (produção de vários sons em simultâneo), efeitos sonoros, sonoridade poderosa, glissandi, etc., tudo contribui para o seu estilo como saxofonista. Acima de tudo ele pretende encontrar a voz humana no seu som: "You can always reach into the human sound of a voice on your horn if you're actually hearing and trying to express the warmth of a human voice". Na realidade, Ornette era mais respeitado como compositor do que como saxofonista.

Mas, como a maioria dos músicos da sua geração, Ornette começou no bebop e no blues. Nasceu em 1930 e começou a tocar aos 14 anos. Oriundo do Texas, de uma família pobre, nunca teve uma educação musical formal. Começa a tocar saxofone na escola, e desde logo com alguns amigos de infância com quem viria a gravar mais tarde: o baterista Charles Moffett, o saxofonista Dewey Redman e o trompetista Bobby Bradford. Aos 17 anos tinha já o seu próprio grupo. Segue-se uma temporada em várias bandas de rhythm & blues onde vai desenvolvendo gradualmente o seu estilo.

O que aliás lhe vai causar problemas. No Mississipi é despedido por ter ensinado um tema de bebop a alguns membros do grupo. Noutra ocasião, em Nova Orleãs, depois de um solo particularmente arrojado, alguns rufias dão-lhe uma sova e destroem-lhe o saxofone. Em 1954 vai para Los Angeles onde ganhava a vida como ascensorista, aproveitando as subidas e descidas do elevador para estudar teoria musical. Frequentava jam sessions, onde muitas vezes era hostilizado, até pelo grande saxofonista Dexter Gordon. Mas é aqui que se rodeia de músicos que acreditam na sua música e com quem ele vai apurar o seu estilo, nomeadamente três que vão ter um papel importante no seu desenvolvimento: o trompetista Don Cherry, o contrabaixista Charlie Haden e o baterista Billy Higgins.

O produtor Lester Koenig, dono da Contemporary Records, decide apostar nele. Em Somethin' Else: The Music of Ornette Coleman (1958), usa ainda uma secção rítmica convencional (Walter Norris no piano, Don Payne no contrabaixo e na bateria Billy Higgins, para além de Don Cherry no trompete), mas em Tomorrow is the Question!, experimenta pela primeira vez um grupo sem piano. Em 1959, com a ajuda de John Lewis e Percy Heath, muda-se para Nova Iorque, onde estuda temporariamente na Lenox School of Jazz (com Lewis e Gunther Schuller).

Mas o que marca verdadeiramente a mudança de estilo é a transição para a Atlantic Records que vai dar origem à fase "clássica" de Ornette, com algumas das suas gravações mais importantes e composições mais apreciadas. Desta vez pode gravar com a sua secção rítmica, com Haden e Higgins. Em 1959 grava The Shape of Jazz to Come, que contém o famoso "Lonely Woman".

Ornette sempre idolatrou Charlie Parker, do qual se considera legítimo herdeiro: "Bird would have understood us. He would have approved our aspiring to something beyond what we inherited." A sua admiração por Parker continuou, e em 1985 grava "Word for Bird".

De facto a música desta fase deve muito ao seu mentor: o espírito bebop está bem presente, a preferência por estruturas convencionais tipo blues, utilização preferencial do registo médio e agudo do saxofone. No entanto, desde então que queria fugir aos clichés desse mesmo bebop.

Em 1960 forma um octeto, que consiste no seu próprio quarteto (com Cherry, Haden e agora Ed Blackwell na bateria) ao qual juntou o quarteto do saxofonista e multi-instrumentista Eric Dolphy (com Freddie Hubbard no trompete, Scott LaFaro no contrabaixo e Billy Higgins). Com este grupo vai para estúdio e grava Free Jazz, talvez a maior referência para o movimento de vanguarda que iria florescer na década de 60. O produtor não consegue refrear o seu entusiasmo e põe na capa, para acentuar o carácter vanguardista, uma reprodução de um quadro de Jackson Pollock, e como subtítulo, escreve "a collective improvisation by the Ornette Coleman double quartet". Trata-se de facto de uma improvisação colectiva, aparentemente sem restrições, com a duração de 36 minutos ininterruptos.

Apesar de uma liberdade no improviso sem precedentes, Ornette não abandona algumas "normas" que vão marcar a sua música nos anos seguintes. Por um lado, o ritmo puro e simples, com groove, e até, por vezes, swing. Por outro a liberdade no gesto, tanto melódico como rítmico. O efeito resulta numa oposição de contrastes, e ocasionalmente aparecem temas, curtos motivos partilhados por todos, que dão à peça uma relativa unidade composicional.

Em 1965, depois de uma fase de retiro artístico, na qual procurou novas formas de se exprimir, reaparece em concertos na Europa a tocar, para além do saxofone, trompete e violino. Ornette considerava a utilização destes instrumentos uma forma de acrescentar côr à sua música.

Para além do seu trabalho como improvisador, sente-se gradualmente atraído pela composição para grupos da área da música erudita. Já tinha utilizado um quarteto de cordas num célebre concerto em Town Hall em 1962, e continuou a escrever para essa formação, mas também para quinteto de sopros ("Sounds and Forms for Wind Quintet", 1965), e também para orquestra sinfónica ("Skies of America", 1971), estreada pela London Symphony.

Em 1966 grava The Empty Foxhole com Charlie Haden e o seu filho Denardo Coleman na bateria, na altura com 10 anos de idade, e que viria a ser um dos esteios do seu grupo nas décadas seguintes. A partir desta altura a sua música parece começar a seguir uma direcção muito própria, em que se fundem elementos de R&B, rock, jazz e world music, como se pode ouvir em Science Fiction, de 1971. Ornette iria explorar, a partir desse momento, os sons da fusão.

Uma viagem a Marrocos em 1973 e a audição de vários grupos locais vai marcá-lo profundamente, justamente pela sua capacidade de juntar elementos de enorme sensualidade a uma liberdade de improvisação sem limites.

Em 1975 forma o grupo eléctrico Prime Time, em que tenta juntar a improvisação mais sofisticada e criativa ao apelo rítmico do rhythm & blues, mais característico da música pop. Paralelamente a esta inflexão, sente a necessidade de teorizar sobre o seu processo criativo. Isso dá origem ao conceito de Harmolodic Theory, ou Harmolodics. Trata-se de um conceito vago, que o próprio não sabe explicar claramente, que está supostamente na base da sua produção musical a partir dos anos 70. "Using the melody, the harmony, and the rhythm all equal." Ou, numa visão mais abstracta e certamente mais feliz: "melody, harmony, and the instrumentation of movement of forms." (Geralmente, tal como afirma o compositor Gunther Schuller, as suas afirmações sobre música são bastante obscuras, e por vezes mesmo contraditórias).

Será que Ornette deixou alguma vez de ser um músico de rhythm & blues? Talvez não, e talvez seja essa a marca que o distingue de outros representantes das correntes de vanguarda no jazz. Desde a sua fase de "bebop progressivo" à música eléctrica de Prime Time, passando pelo desbravar do free jazz (a seguir ao qual se retirou, deixando a porta aberta para outros o explorarem), Ornette nunca abandonou uma certa visceralidade na execução, apesar de já não se deitar de costas no chão e bater os pés no clímax dos seus solos, como quando imitava o saxofonista Big Jay McNeely, um dos seus ídolos da adolescência.

Numa entrevista ao New York Times, em 1981, afirmou: "People have started asking me if I'm really a rhythm-and-blues player, and I always say, why, sure. To me, rhythm is the oxygen that sits under the notes and moves them along, and blues is the coloring of those notes, how they're interpreted in an emotional way".

Ou ainda, noutra entrevista com um tom poético que marca muitas das suas intervenções sobre música: "the theme you play at the start of a number is the territory, and what comes after, which may have very little to do with it, is the adventure".
Aventura implica imprevisto, sorte, acaso, perigo, risco. Afinal de contas, as marcas da música de Ornette Coleman. E Ornette Coleman é a sua música. Nas suas palavras, a sua vida para além da música é igual à de toda a gente: "born, work, sad and happy and etc."

3 Comments:

Blogger Yvette Centeno said...

ritmo e harmonia, como em Shakespeare são vistos à moda neo-platónica, da mística música das esferas.

5:48 PM  
Blogger pedro moreira said...

This comment has been removed by a blog administrator.

10:21 PM  
Anonymous Anonymous said...

Pedro, gostei muito de ler estes três artigos. O do Ornette e V Thompson estão muito interessantes. Vou ficar atento e voltar...

Abraço

5:42 PM  

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