Sunday, March 05, 2006

A Formação no Panorama Musical em Portugal - Algumas Reflexões

(texto escrito para o I Congresso dos Músicos)

Muito se tem discutido sobre a situação da música em Portugal, e concretamente da música portuguesa nas suas mais variadas vertentes. Apoios do Estado, mecenatos privados, quotas nas rádios, para citar alguns dos tópicos mais recorrentes. Todas essas questões são pertinentes, e relevantes no seu âmbito. Mas é preciso acrescentar um aspecto crucial para a compreensão do problema. A consolidação da produção musical no nosso país passa também, e talvez sobretudo, pela melhoria da qualidade dessa prática musical. E não pode haver melhoria sem dar uma atenção muito especial aos aspectos da formação e divulgação musicais no nosso país.

Quando falamos de formação, estamos a falar de pôr em contacto qualquer cidadão de qualquer idade e meio social com os vários níveis de actividade musical, desde o mais elementar ao mais especializado. Essa actividade deveria constituir uma pirâmide, para utilizar uma ilustração visual, em cuja base se incluiriam o ensino nas escolas, acções de divulgação, cursos para amadores, orquestras de comunidade, concertos em organizações locais, para além do ensino especializado de nível superior, com a correspondente actividade pré-profissional e profissional, que constituiria o topo da pirâmide. Temos portanto que separar ensino especializado do ensino não-especializado. Em ambos os casos muito se tem feito, mas muito está ainda por fazer.

1. Ensino não-especializado

O grande desafio consiste em encontrar formas de envolver a música na vida do dia-a-dia das pessoas (não me refiro a música de fundo nas bombas de gasolina...). Tal só será possível mudando um pouco alguns dos nossos hábitos, passando as famílias portuguesas a “consumir” um pouco mais de música de qualidade, seja de que estilo fôr, em casa. Quando falo de música de qualidade, não me refiro de forma alguma a uma visão elitista, mas sim a um tipo de música que exceda a função de pano de fundo, ou seja, música à qual se dá um pouco mais de atenção. Para demonstrar a dificuldade de tal objectivo, basta referir que esse tipo de música não está em geral facilmente disponível: para dar um exemplo, refira-se a quase total ausência de música de qualidade na televisão, já para não falar de programas de cariz pedagógico (o tão badalado serviço público de televisão…).

No capítulo da iniciação musical a nível nacional, é justo reconhecer o papel importante das filarmónicas pelo país fora (para além de uma função social fundamental). Graças a elas, milhares de crianças e jovens têm acesso à prática musical, de outra forma só ao alcance daqueles que têm acesso aos relativamente poucos conservatórios do país. Mas por outro lado as filarmónicas deveriam ser mais responsabilizadas pelos apoios que recebem. Abrilhantar as festas da freguesia não chega. Maestros melhor preparados, repertórios mais estimulantes e maior exigência de qualidade deveriam ser o apanágio dessas organizações. Com as devidas excepções, que as há, felizmente, e onde tal já acontece, estas melhorias teriam um impacto enorme na “formação musical” em Portugal. As filarmónicas poderiam também colaborar com as escolas de ensino básico, facultando a utilização de alguns instrumentos, afinal a grande dificuldade destas em promover ensino musical prático.

O passo verdadeiramente decisivo no ensino da música em Portugal deverá no entanto ser dado justamente nas escolas de ensino básico. Enquanto tal não acontecer, todos os esforços estarão limitados por uma questão verdadeiramente estrutural: o facto de a música estar reservada a um grupo extremamente minoritário da população. A educação, como direito democrático que é, consiste em tornar acessível às pessoas as várias vertentes do saber e das actividades da sociedade. Não se trata de forçar toda a gente a estudar música. Não podemos é aceitar que jovens deixem de se dedicar à música (como a qualquer outra área) por não terem tido acesso a ela.

Só escolas dotadas de instrumentos e aulas práticas de música (pequenos grupos, orquestras, grupos corais), cujo objectivo será essencialmente estimular o gosto pela música, e não afastar alunos em nome dum qualquer conceito pedagógico de suposto rigor e academismo, farão verdadeiramente a diferença. Não é por acaso que essa é precisamente a situação nos países com tradição musical mais forte: Alemanha, Reino Unido, Estados Unidos, França. Claro que levar a cabo este projecto de uma forma integrada tem custos. Mas passa também por vontade política, que tem faltado: foi recentemente elaborado para o Ministério da Educação um programa para uma disciplina opcional do 12º ano chamada “Cultura Musical” que ainda espera a sua aplicação. Sempre seria um primeiro passo.

Outro aspecto importante na divulgação é o desenvolvimento do circuito dos “pequenos” concertos, actualmente muito reduzido, não permitindo prática profissional aos jovens músicos. Este circuito poderia incluir clubes recreativos das freguesias, bibliotecas, escolas, igrejas, museus, etc. onde, por preços muito reduzidos as comunidades teriam acesso a vários tipos de música, enquanto que os jovens músicos veriam a oportunidade de ganhar prática de concertos, uma vez que a prática nas escolas não é suficiente. A aposta nos jovens músicos é também, em grande parte, a aposta na formação de públicos.

2. Ensino especializado

O investimento no ensino da música em Portugal passa obrigatoriamente por dar melhores condições às escolas de música e conservatórios do país. Temos o exemplo do Conservatório Nacional de Lisboa, que não dispõe de uma sala para ensaiar uma orquestra completa, para não referir o adiamento constante de obras urgentes. Raras são as escolas e conservatórios que dispõem de salas individuais de estudo para prática instrumental. Ou seja, as escolas de música devem ter características próprias, e nem sempre o aproveitamento de espaços que foram concebidos para outros fins (caso da larguíssima maioria das escolas de música em Portugal) resulta satisfatoriamente.

Outro problema comum a muitos cursos no nosso país, incluindo os cursos superiores mais recentes nesta área é a ausência de bibliotecas e mediatecas especializadas. Como pode haver investigação académica séria sem esses meios fundamentais? Portugal deve ser dos países do mundo ocidental desenvolvido onde se tiram mais fotocópias no ensino superior. Fotocopia-se porque é quase impossível comprar, ou é quase impossível comprar porque se fotocopia tudo? Boas bibliotecas ajudariam a ultrapassar este problema. É essencial formar mais investigadores, e em áreas não somente restritas à música erudita. Temos alguns investigadores de renome em algumas universidades, mas quase sempre com obra publicada sobre música erudita portuguesa. Essa área de estudo é fundamental, mas não nos podemos limitar a ela. É também necessária mais actividade académica, com mais visibilidade. Mais estudos publicados, maior regularidade, mais publicações especializadas, mais livros em português.

Tal como noutras formas de arte (assim como muitas outras profissões), na música é crucial o contacto com outras experiências, porventura em centros de grande cultura musical. Desta forma, deveria ser parte integrante do desenvolvimento do jovem músico profissional o estudar e adquirir experiência noutros países. A dificuldade neste caso passa pela enorme carência de bolsas para estudo no estrangeiro, e, quando essas existem, são quase sempre restringidas à música erudita: não existe nenhuma bolsa regular para Jazz, em qualquer instituição portuguesa, pública ou privada, para dar um exemplo.

Por outro lado o reconhecimento oficial dos cursos de música prejudica os alunos: conservatórios equiparados a ensino básico (com investimento em horas de estudo muito superior a alguns cursos superiores), cursos superiores muito recentes, com alunos muitas vezes impreparados para estudos desse nível. Está em curso a discussão pública do Regulamento do Ensino Artístico, que esperamos não ignore estes e outros problemas.

Muitas coisas boas se têm feito em Portugal no passado recente: escolas profissionais, melhores cursos superiores, acções de formação regulares. Os problemas culturais e estruturais representam um desafio maior, e só uma visão completa do fenómeno poderá ajudar a ultrapassar dificuldades, e potenciar os esforços já existentes nesta área.

4 Comments:

Blogger Yvette Centeno said...

Ah, eu vejo a música em Portugal um pouco como tudo o que respeita à Arte : um desordenamento que a mão do Criador (e dos criadores) ainda não conseguiu afinar naquela harmonia tão desejada e tão necessária .
A imagem visível seria o pormenor do INFERNO de Bosch,em que os instrumentos agigantados dos músicos prendem nas suas cordas os pecadores condenados.
Mas nós, que amamos a música, que mal teremos feito?

1:16 PM  
Anonymous Anonymous said...

olhem eu:

1 missa por semana
4 missas por mes
52 missas por ano
520 missas por cada 10 anos de vida

Estou faro de me conter. A música é tudo menos "tragável" quando deveria ser exemplar. Se nao tivesse uma sólida formação a nível musical etava completamente "aculturado".
É um problema muito grave e vai alterando a sociedade.
Mais que as bandas a música na Igreja é de vital importancia.. e se ela for má ....
Enfim.

8:38 AM  
Anonymous Anonymous said...

Isso! "Mas nós que amamos a música, que mal teremos feitto?"! A resposta, mais uma vez está à frente dos olhos dos seres humanos e eles mais uma vez não a vêem. Não vos conheço nem me conhecem a mim, mas esta é apenas a minha opinião.
Tentem entender e perceber que se trata de um problema de Consciência e de má Educação. É o resultado da Arte inconsciente(que eu não devia chamar Arte, mas espero que entendam a minha ideia).A partir de meados do séc. XX, uma enchente de seres julgou que a música era só, literalmente, umas notas cromáticas aqui, uns acordes dissonantes ali, uma boa técnica de persuasão instantânea, uma grande pitada de inconsciência na comunicação, uma imagem que convencesse e vendesse, e pela, já algo visível falta de artistas, começaram a dar largas à estupidez da condição socio-humana e a fabricar músicos e "artistas"(se é que sabem o que esta palavra significa...) como quem faz criação de coelhos ou leitões. Será que sabem aquilo que a Revolução Industrial fez ao Planeta, além da extintora poluição? Ok! O dinheiro é uma boa maneira de organização social. Mas, os Homens é que mexem nele. Só seres com grande consciência devem mexer em dinheiro. Onde não há consciência não devem existir seres a mexer em dinheiro, Mas por causa da inconsciência dos meus antepassados, nós saímos para a rua e vemos qualquer ser a mexer em tanto dinheiro, que de certeza não fez nada para o merecer. Falo de Consciência, e por isso, e, apesar de serem, espero, "Artistas", aconselho-os a irem ver mais uma vez ao dicionário e procurar a palavra "consciência". Estudem esse parágrafo. Isolem cada palavra e cada frase. Estabeleçam relações. Como dizia, por causa da falta de consciência na minha Época, os seres, cada vez mais, estabelecem pensamentos maus, ou surjem com teorias como "Eia!!! 2+2.5=4!". O Quê!? 2+2.5=4??? Amigo!Vós nem sabeis o que sgnifica o "2", ou o "+" ou para que é que servem os pontos de exclamação!!!!
A culpa é do sistema de organização! A situação tem vindo a ficar mais grave a partir de meados do séc. XX, mas foi por caus da Revolução Industrial que isto tudo começou.


Respeitamente, peço desculpa a alguém por qualquer coisa, mas como isto trata-se apenas de comunicação e esta última está presente na condição Humana(Segundo espero que seja do vosso conhecimento) e eu pertenço à espécie Humana, Felicito o blog presente e o blog da ivette centeno que na minha opinião têm mérito. Usei-me da Razão e da minha Lógica científica e Natural, para escrever cada palavra e cada frase deste comentário. Não me tomem por ignorante, tomem-me por Aprendiz. Até ao Futuro.

4:33 AM  
Anonymous Anonymous said...

Este texto toca na "ferida" dos problemas existentes no nosso país. Concordo em pleno com todos os pontos focados. Temo apenas que o conteúdo do mesmo seja actual daqui por uns anos...oxalá que não!
Abr.

7:16 PM  

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