Friday, April 07, 2006

Pensamento Musical II - Os Poderes Mágicos da Música

A relação da música com as outras artes remonta aos primórdios do pensamento humano. Apolo, um dos mais belos e gloriosos de todos os antigos deuses, era deus do sol, da medicina, da música, da poesia, e das belas artes. Com qualidades musicais reconhecidas, era o maestro do coro das 9 musas (era também conhecido como Musageta). As Musas reuniam-se no Monte Parnasso para debaterem questões de poesia, ciência e música. Cada uma tinha um pelouro diferente: Clio, musa da história; Euterpe, música; Thalia, poesia pastoral; Melpomene, tragédia; Terpsichore, dança; Erato, poesia lírica; Polyhymnia (retórica), que usava um ceptro para mostrar o poder irresistível da eloquência; Calíope, poesia heróica; e Urânia, musa da astronomia.

Apolo era ele próprio um ideal de beleza, representado como um extraordinário jovem imberbe, vestindo pouco mais que uma coroa de louros (em homenagem ao seu amor por Dafne, transformada em loureiro), e uma lira.

Apolo apaixonou-se por Calíope, e desse amor nasceu Orfeu, cujos talentos musicais são conhecidos. Com a sua lira conseguiu acalmar os demónios do Hades e quase trazer Eurídice de regresso do mundo dos mortos, não fosse a sua distracção fatal no último momento. Quando morre, despedaçado pelas bacantes por ter tocado música triste, os deuses colocam a sua lira no céu, onde se transforma em constelação.

Outro exemplo famoso é o de Amphion, filho de Júpiter e Antíope. Quando se torna rei de Tebas, quer fortificar a sua cidade construindo uma muralha à sua volta. O seu talento musical era de tal forma que, ao cantar, as pedras se deslocavam ao ritmo da voz, marchando para as suas posições na fortificação. Talvez seja a mais antiga referência escrita à importância do ritmo como elemento primordial da música.

Nada representa melhor o sublimar do processo de criação musical do que o episódio de Eco, que, devido ao seu amor não correspondido por Narciso, se enche de melancolia e tristeza, e desaparece gradualmente, num autêntico liebestod clássico, até ficar só a sua voz, a entoar um melodioso lamento, perdida em locais solitários para sempre.

Para os hebreus, a música também tinha poderes mágicos. David, músico, maestro e poeta brilhante (para além de ser provavelmente o primeiro produtor musical), cura as depressões de Saúl tocando a sua harpa (1 Samuel 16: 14-23). Também famoso é o episódio em que o som de 7 trompetes, misturado com os gritos dos israelitas, destrói as paredes de Jericó (Josué 6: 12-20), num dos primeiros confrontos registados entre música e arquitectura, em que a primeira leva nitidamente a melhor.

O Antigo Testamento refere igualmente o Lamento, ou Cântico do Arco, em que os guerreiros se treinam a atirar com o arco com a cadência do ritmo de um poema, um canto fúnebre de David sobre a morte de Saúl e seu filho Jónatas (2 Samuel 1: 17).

Desde os seus primórdios que a música esteve ligada à prática religiosa. Apolo aparece com uma lira, Dionísio (Baco) com um aulo (instrumento de palheta dupla, precursor do moderno oboé). Esses instrumentos eram tocados a solo ou a acompanhar a recitação de poemas épicos. A utilização de coros e secções instrumentais nas tragédias de Ésquilo, Sófocles e Eurípides deriva do culto a Dionísio com o referido aulo.

A partir do século VI a.c. desenvolvem-se festivais e competições de música vocal e instrumental com enorme sucesso. Cedo apareceram músicos profissionais, e a sua proliferação e virtuosismo crescente, levou a um maior grau de complexidade na música.

Aristóteles, no seu livro Política, alerta para o perigo de, na educação musical se dar demasiada importância aos aspectos técnicos, para evitar os excessos característicos dos profissionais, tão em voga. Excessos esses apreciados, segundo ele, por crianças, escravos, e até animais! Para Aristóteles, a educação deveria estimular o gosto e a fruição de melodias e ritmos nobres, e evitar a superficialidade da técnica pela técnica. Trata-se assim do primeiro exemplo de maneirismo musical. No fim do período clássico (entre 450 e 325 a.c.) dá-se uma reacção contra essas complexidades, levando a uma simplificação do estilo, à semelhança do que mais tarde se passaria na transição da Renascença para o Barroco, e do Barroco tardio para o Clássico do século XVIII. O início da era cristã assiste assim a uma prática musical menos elaborada.

Para termos uma ideia de como soava a música desta altura, temos 2 exemplos musicais: um fragmento de um coro de Orestes, de Eurípides (de ca. 200 a.c.), e o famoso Epitáfio de Seikilos, uma "canção de beber" (Skolion), inscrito numa pedra tumular (século II a.c.). A associação da música com os estímulos sensoriais (sobretudo com o vinho) é antiga, e inúmeros músicos e compositores se esforçaram, nalguns casos com grande êxito, a preservar essa tradição.

Se a música da Idade Média não foi muito influenciada pela música da antiguidade, o pensamento musical foi, e bastante. Os textos incidem sobre dois aspectos essenciais: a filosofia (a sua natureza), e a ciência da música. O fundador da teoria musical grega, Pitágoras (ca. 500 a.c.) não fazia distinções entre música e a ciência dos números, que, segundo ele, regulava todos os aspectos do universo espiritual e material. Da mesma forma, a organização dos sons, obedecendo a leis matemáticas, demonstra a harmonia do cosmos. Platão desenvolve estas e outras ideias nos diálogos Timeu e Républica. Dentro deste quadro de harmonia universal, é natural a associação da música com a astronomia. Ptolomeu (século II d.c.) acreditava que certas escalas, modos e notas estavam associados a certos planetas, e seus movimentos. Claro que esta ideia deriva do mito da "música das esferas" de Platão, aquela música silenciosa produzida pelo movimento dos planetas.

Boécio (século VI) conta o episódio em que Pitágoras descobre as leis físicas das consonâncias, ao passar perto de uma oficina de ferreiros. Ao ouvir os sons dos martelos a bater, aproxima-se e após alguma investigação descobre que os sons produzidos dependem do peso do martelo. Descobre igualmente que os ratios dos pesos de dois martelos correspondem às procuradas consonâncias naturais: 1/2 para a oitava, 2/3 para a quinta, 3/4 para a quarta, etc. Esta é uma das leis fundamentais da acústica, facilmente verificável com uma corda vibrante, e o comprimento de corda que vibra.

Para os gregos, música e poesia eram praticamente sinónimos. Para Platão, melos era uma combinação de discurso, ritmo e harmonia. O termo "poesia lírica" designa poesia para cantar ao som da lira. Aristóteles define poesia como tendo melodia, ritmo e linguagem, e refere que "existe outra arte que utiliza só a linguagem, em prosa ou em verso" (Poética, 1.1447a-b). Ou seja, não existia um termo para declamação de poesia sem música.

Para além disso, os pensadores gregos acreditavam que a música tinha qualidades morais, e podia influenciar o comportamento e o carácter dos seus praticantes e ouvintes. Aristóteles, com a sua teoria da imitação, em que a música imita, isto é, representa os estados de alma (doçura, raiva, coragem, etc.) defende que o sentimento imitado é transposto para o ouvinte. Música que imita violência gera sentimentos violentos em quem a ouve. Daí a necessidade de ouvir a música "correcta" para desenvolver o carácter.

Para Platão e Aristóteles, uma educação correcta deve contemplar, em doses equivalentes, música para disciplinar a mente e ginástica para disciplinar o corpo. Na Républica (ca. 380 a.c.), Platão defende que as duas vertentes devem estar equilibradas. Música a mais torna as pessoas neuróticas, e ginástica a mais violentas e ignorantes. Ora aì está um estudo por fazer nos relatórios sobre educação: o ratio de frequentadores de ginásios e praticantes de música. Outro: dentre as vítimas de neuroses, quantas estudam música? Mas Platão vai mais longe. Ele recomenda que os que forem treinados para governar devem evitar melodias que exprimam moleza e indolência. Em vez disso aconselha os modos Frígio e Dórico, que inspiram coragem e determinação. Acima de tudo, as convenções devem ser respeitadas. Uma coisa é certa: a falta de leis na arte e educação leva à anarquia na sociedade. Nas Leis, Platão refere a conhecida máxima "Deixem-me fazer as canções de uma nação, e não me importa quem faz as suas leis", trocadilho com a palavra nomos, que significa lei, mas também designa a estrutura melódica de uma peça.

Já Aristóteles admite que a música possa ser utilizada para diversão, prazer intelectual, para além da educação. Tudo isto dentro de certos limites. Por isso as primeiras constituições de Atenas e Sparta regulavam a utilização da música. Não mais que um precedente muitas vezes repetido ao longo da história, incluindo os nossos dias.

Para os romanos a música era igualmente importante. Cícero e Quintiliano deixaram bem claro que as pessoas cultas tinham obrigatoriamente de ter educação musical. De entre os numerosos imperadores que apoiavam a música, Nero destaca-se em notoriedade, por ter sérias aspirações nessa área, e por outras razões menos honrosas. Curiosamente, sabemos mais sobre música grega do que sobre música romana, da qual não sobreviveu nenhum fragmento. Este facto explica-se em parte pelo esforço deliberado de eliminar todos os vestígios da cultura pagã levado a cabo pelos primeiros séculos do domínio cristão.

2 Comments:

Blogger Palavra Alada said...

ainda hoje estivemos a falar sobre isto :) que interessante!

3:52 AM  
Blogger Marcelo Burmann said...

Olá,

Parabéns pelo blog. Nunca vi tanto conteúdo musical em um.

Grande abraço.

9:36 PM  

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