Friday, April 07, 2006

Pensamento Musical IV - A Música Como Abstracção (1)

Polifonia VS. Harmonia

Um frade do século XI, Guido de Arezzo, teve uma importância extraordinária no desenvolvimento da música quando, para ajudar os seus alunos de canto, decide designar cada nota musical por uma sílaba: ut, re, mi, fa, sol, la. Estas sílabas derivam de um texto para o qual ele compôs música para ilustrar o padrão de tons e meios tons que caracterizam a moderna escala maior.

Ut queant laxis
resonare fibris
Mira gestorum
famuli tuorum,
Solve polluti
Labii reatum, Sancte Joannes.

[Para que os teus servos possam livremente cantar as maravilhas dos teus feitos, limpa as nódoas de culpa dos seus sujos lábios, oh São João.]

Tal como Guido, vejo a necessidade desta oração antes das aulas de solfejo, apesar de alguns alunos insistirem em pôr à prova a sua utilidade.

Mas as contribuições para a pedagogia de Guido não se ficaram por aqui. Para aprenderem melhor os intervalos que as várias notas produzem, os seus seguidores utilizavam a "mão de Guido": o professor aponta com o indicador da mão direita os nós da mão esquerda aberta, onde cada nó representa uma das 20 notas do sistema musical de Guido, baseado em hexacordes. Uma nota que não pertencesse ao sistema era considerada "fora da mão".

Mas o século XI vê surgir, para além das inovações de Guido, dois fenómenos de primordial importância no desenvolvimento da Música: notação musical e polifonia. Polifonia designa música em que várias vozes se combinam não em uníssono, mas em partes diferentes. Após as primeiras tentativas improvisadas, foi possível sistematizar a maior complexidade resultante através da notação musical recentemente desenvolvida, permitindo a repetição e aperfeiçoamento das execuções. Este desenvolvimento da polifonia tem um suporte histórico, não sem alguma ironia, pois a mesma Igreja Cristã onde ele tem lugar se divide em duas, quando o Patriarca de Constantinopla é excomungado pelo Papa em 1054. Uma das primeiras referências à prática da polifonia, que Guido conhecia bem, aparece num tratado anónimo do século IX conhecido por Musica Enchiriadis (Manual de Música), com a descrição do conceito de diafonia (2 vozes), ou organum.

Com a polifonia a música ocidental conhece um fenónemo único, e que estará na base de algumas das maiores realizações artísticas da humanidade. O seu desenvolvimento é considerado por alguns como a fase mais decisiva da história da música ocidental.

A partir desta altura, a música ocidental vai alternar momentos em que o estilo dominante é muito marcado pelo contraponto, enquanto que noutros, será a harmonia a dominar. Há essencialmente 3 momentos na história em que o contraponto chega a níveis de complexidade e sofisticação muito elevados, tendo sido rejeitados pelas gerações que se lhes seguiram: final do Renascimento com Palestrina; final do Barroco com Johann Sebastian Bach; e início do século XX com Arnold Schoenberg. A seguir a estas fases, a música homofónica (baseada em harmonia) destronou o contraponto e a polifonia, que por sua vez se desenvolveram novamente num contexto diferente.

Mas para além da questão do estilo musical, a discussão em roda da polifonia assenta em ideias mais profundas, a saber, se a polifonia deriva, ou não, das leis naturais, tal como, supostamente, a harmonia, ou se é apenas uma construção intelectual para deleite da mente.

Críticas à polifonia existiram desde cedo. Bernardo Cirillo, um padre do século XVI, queixava-se em 1549, do rumo que a música tinha tomado:

"Sabes quanto a música era apreciada pelos antigos como a mais nobre das artes. Com ela produziam grandes efeitos que hoje não conseguimos igualar, seja com retórica ou oratória, controlando as afecções [emoções] da alma [...]. Vejo e oiço a música de hoje, que é suposto ter chegado a níveis de refinamento e perfeição sem precedentes. No entanto não vejo vestígios de nenhum dos modos antigos...Kyrie Eleison significa "Senhor tende piedade de nós". Um músico antigo teria expressado o seu pedido de perdão no modo mixolídio, o que teria comovido qualquer disposição mais emperdenida, senão às lágrimas, pelo menos até uma afecção piedosa [...]. Hoje tudo é cantado em promiscuidade e de forma incerta [...]. Gostaria que a música consistisse de certas harmonias e ritmos aptos a inspirar os nossos sentimentos para a religião e piedade, de acordo com o significado das palavras. Hoje os esforços vão no sentido de fazer uma peça em fuga estricta, de forma que quando um diz "Sanctus" outro pronuncia "Sabath", enquanto que um terceiro canta "Gloria Tua", com certos efeitos que mais parecem gatos em Janeiro [...]."

Bernardino Cirillo, carta de 1549 a Ugolino Gualteruzzi
Lettere Volgari di Diversi Nobilissimi Huomini, ed. Aldo Manuzio, Vol. 3 (Veneza, 1564)

Entre 1545 e 1563, a Igreja Romana reuniu-se intermitentemente em Trento, no norte de Itália, para discutir a Reforma, e sobretudo para tentar corrigir alguns dos excessos que estiveram na sua base, ou seja as 95 teses de Martim Lutero em Wittenberg. Com este Concílio organizou-se a Contra-Reforma, onde também se discutiu, como não podia deixar de ser, o papel da música na Igreja. Mais uma vez a polifonia era criticada: tornava-se impossível compreender as palavras, que eram, afinal, mais importantes. Havia quem defendesse que a música deveria ser banida da Igreja. No entanto, a deliberação final do Concílio sobre esse assunto é muito geral:

"Todas as coisas devem ser ordenadas de forma que as Missas, sejam elas celebradas com ou sem música, possam chegar tranquilamente aos ouvidos e corações de quem as ouve [...]. O objectivo de cantar nos modos musicais não é o prazer vazio do ouvido, mas sim que as palavras sejam claramente compreendidas por todos, e, dessa forma os corações dos ouvintes sejam atraídos para o desejo de harmonias celestiais, na contemplação das alegrias dos abençoados [...]. Deverá ser banida da Igreja toda a música que contenha coisas lascivas e impuras."

Concílio de Trento, Canon da utilização da música a ser utilizada na Missa.

Diz uma lenda do final do século XVI que Palestrina salvou a polifonia da condenação do Concílio compondo uma Missa a 6 vozes extremamente devota em espírito, e clara em relação ao texto, tendo dedicado a obra ao Papa Marcelo, durante o Concílio.

Jean-Philippe Rameau, o principal músico e teórico francês do século XVIII, publica em 1722 o seu famoso Traité de l' Harmonie. Esta obra deriva os princípios básicos da harmonia das leis da acústica, em que o acorde, não a melodia, é o elemento primordial da música. Na realidade, para Rameau, toda a melodia é baseada em harmonia. Este tratado foi extremamente influente nos 2 séculos seguintes, e, de facto, o início do período clássico vê as suas ideias postas em prática de uma forma generalizada, adiando uma nova era marcada essencialmente pelo contraponto para 2 séculos mais tarde.

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