Saturday, April 08, 2006

O Erro de Dom Afonso Henriques e A Prosódia na Música Portuguesa

Prosódia: "pronúncia regular das palavras em harmonia com a acentuação."
in Cândido de Figueiredo, Grande Dicionário da Língua Portuguesa.

Abundam na música portuguesa exemplos em que a letra é atropelada pela música dando origem a erros na métrica do texto. Habituá-mo-nos a cantar e a ouvir "pássaro feridú na asa" e "houve alegria e foguetees no ar" com toda a naturalidade. Claro que isso se deve à importação acrítica de modelos anglo-saxónicos de formas musicais aplicadas à nossa língua, sem ter em conta que o português tem características próprias, que deviam ser postas em evidência em vez de reprimidas.

A maior parte das palavras portuguesas têm uma acentuação na penúltima sílaba, e não na última como seria mais conveniente em música de influência anglo-saxónica. Para além disso, e ao contrário do português do Brasil, onde todas as sílabas têm valor, em Portugal quase que se omitem as sílabas fracas, num efeito parecido com aquilo a que os músicos de Jazz chamam "ghost-note". Isto levanta um desafio maior para quem escreve música vocal no nosso país.

Será que teremos que aceitar estes sucessivos atentados à prosódia nacional com resignação? A resposta tem de ser preocupante uma vez que somos talvez o único país em que duas das mais emblemáticas canções populares, o hino nacional e o "parabéns a você" têm, desse ponto de vista, erros claros: "ó pátria sentee-se a voz" no primeiro caso, e "para o meenino..." no segundo.

Gerações sucessivas de portugueses aprendem estas músicas como se fosse a coisa mais natural do mundo cantar com textos que não encaixam correctamente na música, ou em que somos forçados a dizer o texto incorrectamente sem que ninguém se importe com isso (podemos sempre invocar o facto de que o Alfredo Keil nem português era, triste sina esta!...).

A verdade é que as crianças continuam a aprender músicas com letras a martelo, e a questão é saber por quanto mais tempo.

Vem isto a propósito da nova colecção do jornal Expresso dedicada aos Reis de Portugal. Edição bonita, ilustrada por André Letria, uma leitura pedagógica e divertida para os mais novos. Excepto que, mais uma vez a música é muito mal tratada. Já não me refiro ao facto de a produção musical ser extremamente limitada, com tudo ou quase tudo ser feito em computador, em vez de ter músicos a tocar instrumentos reais. Como habitualmente, dá-se muita importância ao aspecto gráfico e visual, escolhe-se um nome mediático para fazer a narração, e no fim não há orçamento para uma produção musical decente. Não quero com isto dizer que a música não tenha alguma qualidade em termos de composição, mas a produção de facto é muito fraca.

Aliás a letra, isoladamente, também seria possível. O problema é quando se junta essa letra à música. E de facto seria difícil encontrar exemplo mais representativo de má prosódia: em quase todos os versos há um erro. Ou seja a pronúncia não está em harmonia com a acentuação. Neste momento talvez centenas ou mesmo milhares de crianças estejam a aprender aquelas músicas e letras perante o olhar comovido dos pais. Mas será que os pais as ouvem mesmo?

Neste primeiro volume dedicado a Dom Afonso Henriques somos de facto levados a pensar o que teria acontecido caso ele não tivesse feito frente à sua mãe. Ainda estão por estudar as consequências do ponto de vista psicanalítico de um país ter visto a sua origem num matricídio (num sentido figurado, claro), mas isto constitui de facto uma originalidade lusitana.

Talvez não tivéssemos expulsado do território uma civilização brilhante, com grandes poetas e músicos, talvez fôssemos galegos, castelhanos, espanhóis ou mesmo muçulmanos, mas, quem sabe, talvez tratássemos melhor a nossa música vocal.

Ou talvez não. Em todo o caso, é feio bater na mãe.

6 Comments:

Blogger Yvette Centeno said...

Nem bater na mãe nem bater no filho...
Não é bonito o poema de Pessoa ? Será musicável, cantável etc. com a prosódia (não a prosápia...) certa ?
Ah, tantas interrogações e ironias neste país que o Pessoa (des)conheceu alimentando esperanças falsas de mudança.
O Almada é que tinha razão: só nos faltam as qualidades...YC

5:50 PM  
Blogger pedro moreira said...

É como diz o Burt Lencaster no Leopardo do Visconti (recentemente exibido em Lisboa, um luxo para alguns privilegiados, como eu, que o viram como deve ser, ou seja num bom ecrã e não na tv):"é preciso mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma"...
Mas apesar de tudo as coisas vão mesmo mudando, há que ter paciência!
pedro

9:02 PM  
Anonymous Anonymous said...

Vou dizer a todos os cantores que conheço para lerem o teu texto.
Temos de ser os primeiros a não aceitar cantar cançôes com letra a martelo.
Ainda bem que existem músicos/compositores como tu,
Um beijinho
Paula Oliveira

1:37 AM  
Anonymous Anonymous said...

O que nós precisamos mesmo é de um pai que nos abençoe verdadeiramente...

Paula Oliveira

1:41 AM  
Anonymous Anonymous said...

O seu comentario revela um profissional com brio. Obrigada. Estas "marteladas" na prosodia sao uma da coisas a mudar! Cada vez que vou a Portugal, fico horrorizada com os erros que se ouvem na radio e na televisao, um verdadeiro massacre da nossa lingua! Sou emigrante, e a lingua e tudo o que me resta...Que fazer para que os portugueses de Portugal a respeitem?

Maria Fernandes, emigrante nos USA

3:08 PM  
Blogger terezinha said...

Houve alguém que disse: "Aprender. aprender sempre"
Por isso vou andar por aqui.

1:01 AM  

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