Saturday, April 22, 2006

Wolfgang Theophilus Mozart e o Paraíso Perdido

Mozart adorava brincar com nomes. Alterava frequentemente o(s) seu(s) nome(s), assim como o de outras pessoas, na sua correspondência. Numa carta que ele enviou durante a sua viagem para Praga (onde viria a estrear Don Giovanni, em 1787) descreve uma brincadeira que envolvia os seus acompanhantes:

"(...) inventámos nomes para nós durante a viagem. Ei-los: eu sou Punkitititi. A minha mulher é Schable Pumfa. Hofer é Rozka-Pumpa. Stadler é Natchibinitschibi. O meu criado Joseph é Sagadaratà. O meu cão Gauckerl é Schamanuzky. Madame Quallenberg é Runzifunzi. Mlle Crux é Ramlo Schurimuri. Freistadtler é Gaulimauli".

As brincadeiras envolviam todos os seus nomes de baptismo (que era Joannes Chrysostomus Wolfgangus Theophilus Mozart), e consistiam em variações simples sobre o nome (De Mozartini, Mozartus, Mozarty), traduções para outras línguas (Wolfgango, Gottlieb, equivalente alemão de Theophilus), e variações mais complexas como Gnagflow Trazom, ou ainda anagramas como Romatz.

Mozart só começa a utilizar o famoso Amadeus (versão latinizada de Theophilus) a partir de 1774 numa carta dirigida à sua irmã (usava também Amadé). Maynard Solomon defende que a adopção universal de Amadeus no seu nome foi um processo póstumo provocado pelo sucesso da edição das Oeuvres Complèttes de Wolfgang Amadeus Mozart, da Breitkopf & Hartel em 1798-1806. Claro que o popular filme de Milos Forman contribuiu decisivamente para tal em tempos mais recentes.

Mas há uma forma do seu nome que aparece apenas numa fase da sua vida. Em toda a documentação oficial referente ao seu casamento (com Constanze Weber), em 1782, o nome inscrito é Wolfgang Adam Mozart. A escolha de Adam para substituir Theophilus (ou Amadeus) será engano ou uma alteração deliberada? Claro que Adam é um anagrama de Amad(é). Mas será a escolha de um nome com tantas implicações meramente acidental?

Adão (Adam) tem uma função muito específica no Jardim do Eden: é ele que dá nome aos seres vivos. Tal como Mozart, gosta de dar nomes às coisas. Vejamos Génesis 2-18:

"E o Senhor Deus disse: "Não é bom que o homem esteja só. Vou fazer-lhe uma auxiliar que lhe corresponda". Então o Senhor Deus formou da terra todos os animais selvagens e todas as aves do céu, e apresentou-os ao homem para ver como os chamaria; cada ser vivo teria o nome que o homem lhe desse. E o homem deu nome a todos os animais domésticos, a todas as aves do céu e a todos os animais selvagens, mas não encontrou uma auxiliar que lhe correspondesse."

Dar nome às coisas é conhecê-las. Para os antigos era frequente dar dois nomes às crianças, para que o verdadeiro permanecesse secreto para protecção de eventuais práticas de magia. Por outro lado, em rituais iniciáticos e casamentos é frequente a mudança de nome, o que aliás se mantém nos dias de hoje (veja-se o caso do casamento, ou a entronização do Papa). Freud leva a ideia mais longe. Para ele, dar nome a uma coisa é exercer domínio sobre ela.

Não é por acaso que só depois de dar nomes aos animais, ou seja, só depois de os conhecer, Adão constata que nenhum lhe corresponde. Depois da criação da Mulher, o texto diz: "Por isso deixará o homem o pai e a mãe e se unirá à sua mulher, e eles serão uma só carne" (Génesis 2-24). Também é conhecida a sequência: tentados pela serpente, provam o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal e são expulsos do paraíso.

O Homem, criado à imagem de Deus, reúne essas duas componentes, a divina e a terrena. Por outro lado há um aspecto que o distingue de todos os outros seres vivos (para além de ter sido o primeiro), é o único a quem Deus dá o sopro da vida (os animais, esses, assim que são criados vivem logo):

"Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra, soprou-lhe nas narinas o sopro da vida, e ele tornou-se um ser vivente." (Génesis 2-7)

Mozart tinha, desde cedo, plena consciência do dom que possuía, e frequentemente o atribuía à generosidade de Deus.

Por outro lado, Adão quer dizer Homem em hebreu, condição que, para ele, era ainda mais importante do que qualquer estatuto de nobreza concedido pelas convenções sociais. No início do segundo acto da Flauta Mágica, Sarastro é interpelado pelo Orador que lhe diz, acerca de Tamino: "Ele é um príncipe!". E Sarastro responde: "Mais, é um Homem!"

É difícil não estabelecer um paralelo com a situação de Mozart na altura do seu casamento. Depois de entrar em rota de colisão definitiva com o seu Pai Leopold, Mozart tinha abandonado pouco tempo antes a sua Salzburgo natal, contra a vontade dele. Já vivendo em Viena volta a ser atraido pela família Weber (anos antes tinha-se enamorado de Aloysia, uma das irmãs da futura mulher), em cuja casa se instala. Quando manifesta a vontade de casar com Constanze Leopold não pode estar mais em desacordo. De forma que este não dará o seu consentimento ao matrimónio, tão insistentemente pedido, até várias semanas após o mesmo. Mozart sabia que tinha enveredado por um caminho de independência do qual não podia regressar, e assim casou sem a autorização paternal.

Tal como Adão, preferiu a liberdade e o casamento em vez da segurança da protecção paternal. Tal como Adão, casou desafiando a autoridade do seu criador, consciente das consequências desse acto.

Concordo com Solomon quando sugere que a utilização do nome Adam não é acidental. Em várias ocasiões (incluindo o casamento) Mozart se recusou a apresentar o certificado de baptismo, quando para tal bastava fazer um requerimento ao registo da Catedral de Salzburgo. A sua recusa em fazê-lo poderá estar na base de nunca ter sido aceite no Tonkunstler-Societat (Sociedade dos Músicos) negando a possibilidade de a sua família beneficiar de uma pensão após a sua morte.

Dias após o casamento, Mozart regressaria ao seu nome usual, nunca mais usando Adam na sua assinatura. No entanto, na oração funerária maçónica em sua honra descrita por Karl Hensler em 1792 (Mozart tinha-se juntado à Maçonaria em Dezembro de 1784) foi designado 3 vezes como "A***". O número de asteriscos aponta provavelmente para um nome com 4 letras, e os iniciados tinham nomes secretos.

Seria Adam o seu?

Saturday, April 08, 2006

O Erro de Dom Afonso Henriques e A Prosódia na Música Portuguesa

Prosódia: "pronúncia regular das palavras em harmonia com a acentuação."
in Cândido de Figueiredo, Grande Dicionário da Língua Portuguesa.

Abundam na música portuguesa exemplos em que a letra é atropelada pela música dando origem a erros na métrica do texto. Habituá-mo-nos a cantar e a ouvir "pássaro feridú na asa" e "houve alegria e foguetees no ar" com toda a naturalidade. Claro que isso se deve à importação acrítica de modelos anglo-saxónicos de formas musicais aplicadas à nossa língua, sem ter em conta que o português tem características próprias, que deviam ser postas em evidência em vez de reprimidas.

A maior parte das palavras portuguesas têm uma acentuação na penúltima sílaba, e não na última como seria mais conveniente em música de influência anglo-saxónica. Para além disso, e ao contrário do português do Brasil, onde todas as sílabas têm valor, em Portugal quase que se omitem as sílabas fracas, num efeito parecido com aquilo a que os músicos de Jazz chamam "ghost-note". Isto levanta um desafio maior para quem escreve música vocal no nosso país.

Será que teremos que aceitar estes sucessivos atentados à prosódia nacional com resignação? A resposta tem de ser preocupante uma vez que somos talvez o único país em que duas das mais emblemáticas canções populares, o hino nacional e o "parabéns a você" têm, desse ponto de vista, erros claros: "ó pátria sentee-se a voz" no primeiro caso, e "para o meenino..." no segundo.

Gerações sucessivas de portugueses aprendem estas músicas como se fosse a coisa mais natural do mundo cantar com textos que não encaixam correctamente na música, ou em que somos forçados a dizer o texto incorrectamente sem que ninguém se importe com isso (podemos sempre invocar o facto de que o Alfredo Keil nem português era, triste sina esta!...).

A verdade é que as crianças continuam a aprender músicas com letras a martelo, e a questão é saber por quanto mais tempo.

Vem isto a propósito da nova colecção do jornal Expresso dedicada aos Reis de Portugal. Edição bonita, ilustrada por André Letria, uma leitura pedagógica e divertida para os mais novos. Excepto que, mais uma vez a música é muito mal tratada. Já não me refiro ao facto de a produção musical ser extremamente limitada, com tudo ou quase tudo ser feito em computador, em vez de ter músicos a tocar instrumentos reais. Como habitualmente, dá-se muita importância ao aspecto gráfico e visual, escolhe-se um nome mediático para fazer a narração, e no fim não há orçamento para uma produção musical decente. Não quero com isto dizer que a música não tenha alguma qualidade em termos de composição, mas a produção de facto é muito fraca.

Aliás a letra, isoladamente, também seria possível. O problema é quando se junta essa letra à música. E de facto seria difícil encontrar exemplo mais representativo de má prosódia: em quase todos os versos há um erro. Ou seja a pronúncia não está em harmonia com a acentuação. Neste momento talvez centenas ou mesmo milhares de crianças estejam a aprender aquelas músicas e letras perante o olhar comovido dos pais. Mas será que os pais as ouvem mesmo?

Neste primeiro volume dedicado a Dom Afonso Henriques somos de facto levados a pensar o que teria acontecido caso ele não tivesse feito frente à sua mãe. Ainda estão por estudar as consequências do ponto de vista psicanalítico de um país ter visto a sua origem num matricídio (num sentido figurado, claro), mas isto constitui de facto uma originalidade lusitana.

Talvez não tivéssemos expulsado do território uma civilização brilhante, com grandes poetas e músicos, talvez fôssemos galegos, castelhanos, espanhóis ou mesmo muçulmanos, mas, quem sabe, talvez tratássemos melhor a nossa música vocal.

Ou talvez não. Em todo o caso, é feio bater na mãe.

Friday, April 07, 2006

Pensamento Musical I - Introdução

(conferência na Universidade Lusíada, curso de Arquitectura, Fevereiro de 2003)

Falar de música para não-músicos é um desafio em que a essência das coisas tem de ser apurada, em vez do conforto da discussão de especificidades técnicas, que só a músicos interessam. Passamos tanto tempo a decifrar e analisar o detalhe e a complexidade da construção musical, que corremos o risco de nos esquecermos do que é afinal mais importante: os aspectos psicológicos, emocionais, artísticos, e até sociais que fazem com que a música esteja tão presente nas nossas vidas.

A música atravessa uma fase interessante. Nunca na história houve tanta divulgação e sucesso comercial como hoje. Nunca houve tantas pessoas a ouvir e a consumir música. Nunca houve tantos músicos, profissionais e amadores. E no entanto, nunca foi tão desvalorizada, nem a consciência da sua importância foi tão apagada como agora. Ouvimos música em restaurantes, cafés, e até bombas de gasolina, mas não existem discussões sérias em roda da música, da sua estética, da sua educação. Tornámo-nos indiferentes à música. Há quantos anos não se verifica um escândalo na estreia de uma peça? A música teve outra relevância noutros tempos, ocupando um lugar central no pensamento, na política, religião, e até na ciência. Música utilizada para formar guerreiros na antiguidade. Compositores da Idade Média queimados na fogueira por usarem dissonâncias que representavam o diabo nas suas peças. Bach quase que foi preso por causa de um improviso entusiasmado ao orgão num hino que confundiu a congregação que o cantava. Na estreia da Sagração da Primavera em Paris, Stravinsky teve que gritar dos bastidores para o palco os números de ensaio para os bailarinos, porque estes não conseguiam ouvir a orquestra devido aos distúrbios na plateia, que acabaram em pancadaria.

Hoje em dia, a música tornou-se num fenómeno rodeado de indiferença. E no entanto, a relação da humanidade com a música tem uma história gloriosa, em que o pensamento e a prática musicais andaram de mãos dadas desde o início.

O pensamento musical começa com o próprio pensamento. A cultura europeia sempre teve uma enorme atracção pela antiguidade clássica. Com a música não foi diferente. Ao longo da Idade Média, os autores gregos e romanos foram fonte de sabedoria e inspiração para os criadores nas várias áreas. Mas enquanto que na filosofia, literatura, arquitectura e belas artes os exemplos existiam e podiam ser estudados (através de estátuas e monumentos, por exemplo), na música não existia uma única peça ou fragmento sobrevivente. Para os que acreditam que a história da música começa verdadeiramente com a notação musical, essa história começa apenas no século VIII, em plena idade média.

Pensamento Musical II - Os Poderes Mágicos da Música

A relação da música com as outras artes remonta aos primórdios do pensamento humano. Apolo, um dos mais belos e gloriosos de todos os antigos deuses, era deus do sol, da medicina, da música, da poesia, e das belas artes. Com qualidades musicais reconhecidas, era o maestro do coro das 9 musas (era também conhecido como Musageta). As Musas reuniam-se no Monte Parnasso para debaterem questões de poesia, ciência e música. Cada uma tinha um pelouro diferente: Clio, musa da história; Euterpe, música; Thalia, poesia pastoral; Melpomene, tragédia; Terpsichore, dança; Erato, poesia lírica; Polyhymnia (retórica), que usava um ceptro para mostrar o poder irresistível da eloquência; Calíope, poesia heróica; e Urânia, musa da astronomia.

Apolo era ele próprio um ideal de beleza, representado como um extraordinário jovem imberbe, vestindo pouco mais que uma coroa de louros (em homenagem ao seu amor por Dafne, transformada em loureiro), e uma lira.

Apolo apaixonou-se por Calíope, e desse amor nasceu Orfeu, cujos talentos musicais são conhecidos. Com a sua lira conseguiu acalmar os demónios do Hades e quase trazer Eurídice de regresso do mundo dos mortos, não fosse a sua distracção fatal no último momento. Quando morre, despedaçado pelas bacantes por ter tocado música triste, os deuses colocam a sua lira no céu, onde se transforma em constelação.

Outro exemplo famoso é o de Amphion, filho de Júpiter e Antíope. Quando se torna rei de Tebas, quer fortificar a sua cidade construindo uma muralha à sua volta. O seu talento musical era de tal forma que, ao cantar, as pedras se deslocavam ao ritmo da voz, marchando para as suas posições na fortificação. Talvez seja a mais antiga referência escrita à importância do ritmo como elemento primordial da música.

Nada representa melhor o sublimar do processo de criação musical do que o episódio de Eco, que, devido ao seu amor não correspondido por Narciso, se enche de melancolia e tristeza, e desaparece gradualmente, num autêntico liebestod clássico, até ficar só a sua voz, a entoar um melodioso lamento, perdida em locais solitários para sempre.

Para os hebreus, a música também tinha poderes mágicos. David, músico, maestro e poeta brilhante (para além de ser provavelmente o primeiro produtor musical), cura as depressões de Saúl tocando a sua harpa (1 Samuel 16: 14-23). Também famoso é o episódio em que o som de 7 trompetes, misturado com os gritos dos israelitas, destrói as paredes de Jericó (Josué 6: 12-20), num dos primeiros confrontos registados entre música e arquitectura, em que a primeira leva nitidamente a melhor.

O Antigo Testamento refere igualmente o Lamento, ou Cântico do Arco, em que os guerreiros se treinam a atirar com o arco com a cadência do ritmo de um poema, um canto fúnebre de David sobre a morte de Saúl e seu filho Jónatas (2 Samuel 1: 17).

Desde os seus primórdios que a música esteve ligada à prática religiosa. Apolo aparece com uma lira, Dionísio (Baco) com um aulo (instrumento de palheta dupla, precursor do moderno oboé). Esses instrumentos eram tocados a solo ou a acompanhar a recitação de poemas épicos. A utilização de coros e secções instrumentais nas tragédias de Ésquilo, Sófocles e Eurípides deriva do culto a Dionísio com o referido aulo.

A partir do século VI a.c. desenvolvem-se festivais e competições de música vocal e instrumental com enorme sucesso. Cedo apareceram músicos profissionais, e a sua proliferação e virtuosismo crescente, levou a um maior grau de complexidade na música.

Aristóteles, no seu livro Política, alerta para o perigo de, na educação musical se dar demasiada importância aos aspectos técnicos, para evitar os excessos característicos dos profissionais, tão em voga. Excessos esses apreciados, segundo ele, por crianças, escravos, e até animais! Para Aristóteles, a educação deveria estimular o gosto e a fruição de melodias e ritmos nobres, e evitar a superficialidade da técnica pela técnica. Trata-se assim do primeiro exemplo de maneirismo musical. No fim do período clássico (entre 450 e 325 a.c.) dá-se uma reacção contra essas complexidades, levando a uma simplificação do estilo, à semelhança do que mais tarde se passaria na transição da Renascença para o Barroco, e do Barroco tardio para o Clássico do século XVIII. O início da era cristã assiste assim a uma prática musical menos elaborada.

Para termos uma ideia de como soava a música desta altura, temos 2 exemplos musicais: um fragmento de um coro de Orestes, de Eurípides (de ca. 200 a.c.), e o famoso Epitáfio de Seikilos, uma "canção de beber" (Skolion), inscrito numa pedra tumular (século II a.c.). A associação da música com os estímulos sensoriais (sobretudo com o vinho) é antiga, e inúmeros músicos e compositores se esforçaram, nalguns casos com grande êxito, a preservar essa tradição.

Se a música da Idade Média não foi muito influenciada pela música da antiguidade, o pensamento musical foi, e bastante. Os textos incidem sobre dois aspectos essenciais: a filosofia (a sua natureza), e a ciência da música. O fundador da teoria musical grega, Pitágoras (ca. 500 a.c.) não fazia distinções entre música e a ciência dos números, que, segundo ele, regulava todos os aspectos do universo espiritual e material. Da mesma forma, a organização dos sons, obedecendo a leis matemáticas, demonstra a harmonia do cosmos. Platão desenvolve estas e outras ideias nos diálogos Timeu e Républica. Dentro deste quadro de harmonia universal, é natural a associação da música com a astronomia. Ptolomeu (século II d.c.) acreditava que certas escalas, modos e notas estavam associados a certos planetas, e seus movimentos. Claro que esta ideia deriva do mito da "música das esferas" de Platão, aquela música silenciosa produzida pelo movimento dos planetas.

Boécio (século VI) conta o episódio em que Pitágoras descobre as leis físicas das consonâncias, ao passar perto de uma oficina de ferreiros. Ao ouvir os sons dos martelos a bater, aproxima-se e após alguma investigação descobre que os sons produzidos dependem do peso do martelo. Descobre igualmente que os ratios dos pesos de dois martelos correspondem às procuradas consonâncias naturais: 1/2 para a oitava, 2/3 para a quinta, 3/4 para a quarta, etc. Esta é uma das leis fundamentais da acústica, facilmente verificável com uma corda vibrante, e o comprimento de corda que vibra.

Para os gregos, música e poesia eram praticamente sinónimos. Para Platão, melos era uma combinação de discurso, ritmo e harmonia. O termo "poesia lírica" designa poesia para cantar ao som da lira. Aristóteles define poesia como tendo melodia, ritmo e linguagem, e refere que "existe outra arte que utiliza só a linguagem, em prosa ou em verso" (Poética, 1.1447a-b). Ou seja, não existia um termo para declamação de poesia sem música.

Para além disso, os pensadores gregos acreditavam que a música tinha qualidades morais, e podia influenciar o comportamento e o carácter dos seus praticantes e ouvintes. Aristóteles, com a sua teoria da imitação, em que a música imita, isto é, representa os estados de alma (doçura, raiva, coragem, etc.) defende que o sentimento imitado é transposto para o ouvinte. Música que imita violência gera sentimentos violentos em quem a ouve. Daí a necessidade de ouvir a música "correcta" para desenvolver o carácter.

Para Platão e Aristóteles, uma educação correcta deve contemplar, em doses equivalentes, música para disciplinar a mente e ginástica para disciplinar o corpo. Na Républica (ca. 380 a.c.), Platão defende que as duas vertentes devem estar equilibradas. Música a mais torna as pessoas neuróticas, e ginástica a mais violentas e ignorantes. Ora aì está um estudo por fazer nos relatórios sobre educação: o ratio de frequentadores de ginásios e praticantes de música. Outro: dentre as vítimas de neuroses, quantas estudam música? Mas Platão vai mais longe. Ele recomenda que os que forem treinados para governar devem evitar melodias que exprimam moleza e indolência. Em vez disso aconselha os modos Frígio e Dórico, que inspiram coragem e determinação. Acima de tudo, as convenções devem ser respeitadas. Uma coisa é certa: a falta de leis na arte e educação leva à anarquia na sociedade. Nas Leis, Platão refere a conhecida máxima "Deixem-me fazer as canções de uma nação, e não me importa quem faz as suas leis", trocadilho com a palavra nomos, que significa lei, mas também designa a estrutura melódica de uma peça.

Já Aristóteles admite que a música possa ser utilizada para diversão, prazer intelectual, para além da educação. Tudo isto dentro de certos limites. Por isso as primeiras constituições de Atenas e Sparta regulavam a utilização da música. Não mais que um precedente muitas vezes repetido ao longo da história, incluindo os nossos dias.

Para os romanos a música era igualmente importante. Cícero e Quintiliano deixaram bem claro que as pessoas cultas tinham obrigatoriamente de ter educação musical. De entre os numerosos imperadores que apoiavam a música, Nero destaca-se em notoriedade, por ter sérias aspirações nessa área, e por outras razões menos honrosas. Curiosamente, sabemos mais sobre música grega do que sobre música romana, da qual não sobreviveu nenhum fragmento. Este facto explica-se em parte pelo esforço deliberado de eliminar todos os vestígios da cultura pagã levado a cabo pelos primeiros séculos do domínio cristão.

Pensamento Musical III - Música Para Servir Deus

Em 312 d.c . o Imperador Constantino converte-se ao Cristianismo, dando início a mais de 10 séculos de domínio absoluto da cultura europeia, incluindo a prática musical. Com efeito, à medida que o Império se desmoronava, a Igreja consolidava o seu poder, tornando-se na principal força unificadora da Europa. Vários Papas tentaram uniformizar as numerosas liturgias locais, e a música não fugiu a essa normalização. O Papa Gregório II (715-31) teve particular importância nesse processo, ao reorganizar o repertório litúrgico, dando origem ao que mais tarde veio a ser conhecido por canto gregoriano.

Vários pensadores, conhecidos como os Padres da Igreja, deixaram testemunhos sobre a importância da música, influenciando a sua prática durante os séculos seguintes. São João Crisóstomo, São Basílio, Santo Ambrósio, Santo Agostinho e São Jerónimo acreditavam que o poder da música residia na capacidade de inspirar pensamentos divinos, para além de influenciar, para o bem e para o mal, a personalidade do ouvinte. Santo Ambrósio orgulha-se de usar a música para cativar fiéis. "Alguns dizem que já seduzi pessoas [para a fé] com as melodias dos meus hinos. Não o nego."

Mas mais importante era a necessidade de evitar o prazer da música só pelo prazer. A música devia servir apenas a religião, e nada mais. O próprio Santo Agostinho, num texto famoso, confessa-nos amargamente que cedeu ao pecado de se deixar comover pelo canto em vez do que era cantado:

"Quando recordo as lágrimas que derramei na psalmodia da Tua igreja, quando recuperei a minha fé, e como mesmo agora me deixo comover não pelo canto mas por aquilo que é cantado, quando é cantado por uma voz clara e uma melodia conveniente, então compreendo a grande utilidade deste costume. Por isso hesito entre prazer perigoso e plenitude provada, embora me sinta inclinado a aprovar a utilização do canto na igreja (apesar de não ter em relação a esse assunto uma opinião irredutível), para que as mentes mais fracas possam ser estimuladas para pensamentos devotos pelo deleite auditivo. Mas quando me comovo mais pelo canto do que pelo que é cantado, confesso ter pecado gravemente, e então lamento ter ouvido o canto. Vê o estado em que me encontro! Chora comigo, e chora por mim, tu que controlas os teus sentimentos mais íntimos da melhor forma. Para aqueles de vós que não reagem desta maneira, este problema não é vosso. Mas Tu, Senhor meu Deus, ouve, tem piedade de mim, e cura-me-Tu em cuja imagem me tornei um problema para mim próprio; e esta é a minha fraqueza."

Santo Agostinho, Confissões 10:33

No seu tratado De Musica (começado em 387 d.c.), defende as 3 principais características da música: claritas, integritas, veritas, qualidades que têm faltado a muitas peças ao longo dos tempos, incluindo o nosso.

A maior autoridade em música na Idade Média foi sem dúvida Boécio (ca. 480-524). No seu tratado De Institutione Musica, recupera ideias de teoria musical e filosofia da Grécia antiga. Para ele, a música divide-se em 3 tipos: musica mundana, ou cósmica, que regula as relações numéricas do movimento dos planetas e dos elementos; musica humana, que controla a união do corpo e da alma; e musica instrumentalis, ou música produzida por instrumentos (incluindo a voz humana), que deve reflectir a mesma ordem cósmica.

A imagem do Cosmos resultante das discussões de musica mundana e musica humana inluenciaram, entre outros, a estrutura do Paraíso na Divina Comédia de Dante. A doutrina da musica humana sobreviveu durante séculos, podemos dizer aliás até aos nossos dias: Boécio não deixaria de ter orgulho, mas também alguma estupefacção, ao ler a secção de astrologia nos jornais diários. Curiosamente, para Boécio, musica instrumentalis (a música tal como a conhecemos hoje) era a categoria menos importante das três. Música era, acima de tudo, a disciplina e compreensão dos fenómenos a ela associados, e não necessariamente a sua prática.

Tal como diz Donald Jay Grout, os cânticos da Igreja Romana são um dos maiores tesouros da civilização ocidental. Tal como a arquitectura românica, são monumentos à fé religiosa, e personificam o sentido comunitário e sensibilidade estética dessa época. Foram a fonte e inspiração da esmagadora maioria da música erudita na Europa até ao século XVI. Só recentemente foram abandonados, sobretudo a seguir ao Concílio Vaticano II (1962-65), em que o latim foi substituído pelo vernáculo local nos serviços da Igreja Católica.

A relação da música ocidental com a Igreja Cristã continuará nos séculos seguintes, atingindo o apogeu com um dos maiores génios de sempre: Johann Sebastian Bach. Bach escrevia no final das suas partituras as 3 letras SDG (Solo Deo Gloria). E no início: JJ (Jesu Juva).

Pensamento Musical IV - A Música Como Abstracção (1)

Polifonia VS. Harmonia

Um frade do século XI, Guido de Arezzo, teve uma importância extraordinária no desenvolvimento da música quando, para ajudar os seus alunos de canto, decide designar cada nota musical por uma sílaba: ut, re, mi, fa, sol, la. Estas sílabas derivam de um texto para o qual ele compôs música para ilustrar o padrão de tons e meios tons que caracterizam a moderna escala maior.

Ut queant laxis
resonare fibris
Mira gestorum
famuli tuorum,
Solve polluti
Labii reatum, Sancte Joannes.

[Para que os teus servos possam livremente cantar as maravilhas dos teus feitos, limpa as nódoas de culpa dos seus sujos lábios, oh São João.]

Tal como Guido, vejo a necessidade desta oração antes das aulas de solfejo, apesar de alguns alunos insistirem em pôr à prova a sua utilidade.

Mas as contribuições para a pedagogia de Guido não se ficaram por aqui. Para aprenderem melhor os intervalos que as várias notas produzem, os seus seguidores utilizavam a "mão de Guido": o professor aponta com o indicador da mão direita os nós da mão esquerda aberta, onde cada nó representa uma das 20 notas do sistema musical de Guido, baseado em hexacordes. Uma nota que não pertencesse ao sistema era considerada "fora da mão".

Mas o século XI vê surgir, para além das inovações de Guido, dois fenómenos de primordial importância no desenvolvimento da Música: notação musical e polifonia. Polifonia designa música em que várias vozes se combinam não em uníssono, mas em partes diferentes. Após as primeiras tentativas improvisadas, foi possível sistematizar a maior complexidade resultante através da notação musical recentemente desenvolvida, permitindo a repetição e aperfeiçoamento das execuções. Este desenvolvimento da polifonia tem um suporte histórico, não sem alguma ironia, pois a mesma Igreja Cristã onde ele tem lugar se divide em duas, quando o Patriarca de Constantinopla é excomungado pelo Papa em 1054. Uma das primeiras referências à prática da polifonia, que Guido conhecia bem, aparece num tratado anónimo do século IX conhecido por Musica Enchiriadis (Manual de Música), com a descrição do conceito de diafonia (2 vozes), ou organum.

Com a polifonia a música ocidental conhece um fenónemo único, e que estará na base de algumas das maiores realizações artísticas da humanidade. O seu desenvolvimento é considerado por alguns como a fase mais decisiva da história da música ocidental.

A partir desta altura, a música ocidental vai alternar momentos em que o estilo dominante é muito marcado pelo contraponto, enquanto que noutros, será a harmonia a dominar. Há essencialmente 3 momentos na história em que o contraponto chega a níveis de complexidade e sofisticação muito elevados, tendo sido rejeitados pelas gerações que se lhes seguiram: final do Renascimento com Palestrina; final do Barroco com Johann Sebastian Bach; e início do século XX com Arnold Schoenberg. A seguir a estas fases, a música homofónica (baseada em harmonia) destronou o contraponto e a polifonia, que por sua vez se desenvolveram novamente num contexto diferente.

Mas para além da questão do estilo musical, a discussão em roda da polifonia assenta em ideias mais profundas, a saber, se a polifonia deriva, ou não, das leis naturais, tal como, supostamente, a harmonia, ou se é apenas uma construção intelectual para deleite da mente.

Críticas à polifonia existiram desde cedo. Bernardo Cirillo, um padre do século XVI, queixava-se em 1549, do rumo que a música tinha tomado:

"Sabes quanto a música era apreciada pelos antigos como a mais nobre das artes. Com ela produziam grandes efeitos que hoje não conseguimos igualar, seja com retórica ou oratória, controlando as afecções [emoções] da alma [...]. Vejo e oiço a música de hoje, que é suposto ter chegado a níveis de refinamento e perfeição sem precedentes. No entanto não vejo vestígios de nenhum dos modos antigos...Kyrie Eleison significa "Senhor tende piedade de nós". Um músico antigo teria expressado o seu pedido de perdão no modo mixolídio, o que teria comovido qualquer disposição mais emperdenida, senão às lágrimas, pelo menos até uma afecção piedosa [...]. Hoje tudo é cantado em promiscuidade e de forma incerta [...]. Gostaria que a música consistisse de certas harmonias e ritmos aptos a inspirar os nossos sentimentos para a religião e piedade, de acordo com o significado das palavras. Hoje os esforços vão no sentido de fazer uma peça em fuga estricta, de forma que quando um diz "Sanctus" outro pronuncia "Sabath", enquanto que um terceiro canta "Gloria Tua", com certos efeitos que mais parecem gatos em Janeiro [...]."

Bernardino Cirillo, carta de 1549 a Ugolino Gualteruzzi
Lettere Volgari di Diversi Nobilissimi Huomini, ed. Aldo Manuzio, Vol. 3 (Veneza, 1564)

Entre 1545 e 1563, a Igreja Romana reuniu-se intermitentemente em Trento, no norte de Itália, para discutir a Reforma, e sobretudo para tentar corrigir alguns dos excessos que estiveram na sua base, ou seja as 95 teses de Martim Lutero em Wittenberg. Com este Concílio organizou-se a Contra-Reforma, onde também se discutiu, como não podia deixar de ser, o papel da música na Igreja. Mais uma vez a polifonia era criticada: tornava-se impossível compreender as palavras, que eram, afinal, mais importantes. Havia quem defendesse que a música deveria ser banida da Igreja. No entanto, a deliberação final do Concílio sobre esse assunto é muito geral:

"Todas as coisas devem ser ordenadas de forma que as Missas, sejam elas celebradas com ou sem música, possam chegar tranquilamente aos ouvidos e corações de quem as ouve [...]. O objectivo de cantar nos modos musicais não é o prazer vazio do ouvido, mas sim que as palavras sejam claramente compreendidas por todos, e, dessa forma os corações dos ouvintes sejam atraídos para o desejo de harmonias celestiais, na contemplação das alegrias dos abençoados [...]. Deverá ser banida da Igreja toda a música que contenha coisas lascivas e impuras."

Concílio de Trento, Canon da utilização da música a ser utilizada na Missa.

Diz uma lenda do final do século XVI que Palestrina salvou a polifonia da condenação do Concílio compondo uma Missa a 6 vozes extremamente devota em espírito, e clara em relação ao texto, tendo dedicado a obra ao Papa Marcelo, durante o Concílio.

Jean-Philippe Rameau, o principal músico e teórico francês do século XVIII, publica em 1722 o seu famoso Traité de l' Harmonie. Esta obra deriva os princípios básicos da harmonia das leis da acústica, em que o acorde, não a melodia, é o elemento primordial da música. Na realidade, para Rameau, toda a melodia é baseada em harmonia. Este tratado foi extremamente influente nos 2 séculos seguintes, e, de facto, o início do período clássico vê as suas ideias postas em prática de uma forma generalizada, adiando uma nova era marcada essencialmente pelo contraponto para 2 séculos mais tarde.

Pensamento Musical V - A Música Como Abstracção (2)

A Música Nos Pensadores Pós-Renascimento

A música volta a ocupar um lugar central nas discussões dos pensadores pós-renascimento. Recuperam-se ideias antigas, e, uma vez mais se investigam as várias facetas da prática musical em função de aspectos de religião, filosofia, e ciências da natureza.

Robert Fludd (1574-1637), alquimista inglês do século XVII, com a sua "música das esferas": todo o universo é um instrumento musical cromático; o próprio Deus é músico. Os astros estão dispostos segundo as regras da harmonia musical, as distâncias que os separam respeitam as proporções dos intervalos.

Ilustração: música das esferas. A mão é a da Divindade, que acciona o gigantesco instrumento cósmico de música, onde todas as proporções, todos os intervalos são representados.

Athanasius Kircher, jesuíta alemão do século XVII, publica um tratado, Musurgia Universalis, que se torna no principal tratado de música e acústica do século XVII. Fortemente inspirado por Pitágoras, retoma também ideias do nosso conhecido Guido de Arezzo.

Ilustração: mão musical.

Ilustração: transcrições de canto de pássaros. De notar que o papagaio faz a saudação na língua em que a aprendeu, o grego (khaire). Este processo foi retomado no século XX pelo grande compositor francês Olivier Messian, nomeadamente na sua peça Réveil des Oiseaux, de 1953.

Ilustração: Sistemas econométricos. Construção de ecos polifónicos e heterofónicos. Estes sistemas pertencem ao que Kircher chama magia fonocâmptica. Mostram que nem só a harmonia deriva da ordem natural.

Propriedades terapêuticas da música: mordidela de tarântula

Ilustração: homens afectados por mordidela de tarântula, que dançam frenéticamente ao som da tarantela, para se curarem do veneno.

Ilustração: cura pela música da mordidela de tarântula. Naquele que deve ser o primeiro tratado de terapia musical, Kircher descreve o curioso fenómeno do tarantismo, que afecta os habitantes da Apúlia, no sul de Itália, e que os obriga a dançar frenéticamente sem respeitar convenções sociais. Esta doença era imputada à mordidela de tarântula, e a única maneira de se curarem era interpretar repetidamente a melodia (tarantela), até à exaustão. Na realidade a doença parece ter sido causada por uma psicose periódica como reacção a normas sociais demasiado restritivas. Kircher explica que a cura se deve à transpiração do veneno, e que o tipo de música deve estar de acordo com a constituição da vítima. Na ilustração vê-se a melodia que serve de antídoto, a região da Apúlia e exemplares autênticos da tarântula dessa região.

Pensamento Musical VI - A Música Como Abstracção (3)

Retórica e Prolongamento

Com o humanismo do século XVI, gerado pelo Renascimento, o pensamento recuperou algumas ideias da Antiguidade Clássica, sobretudo no que toca à gramática, retórica, poesia, história e filosofia moral. A relação da música com a prosa é, no entanto, mais antiga. Já John "Cotton", teórico do século XII, fazia esse paralelo. A articulação das frases da melodia corresponde às do texto.

Ilustração: Bach

Com Bach, a relação entre música e retórica conhece um significado muito profundo. Em 1723, o grande compositor escreve um conjunto de 15 peças de carácter pedagógico intituladas "invenções". O termo "invenção" pode-nos parecer um pouco confuso se não soubermos que não designa um género musical (viria a designar mais tarde), mas sim um termo que pertence à retórica, usado coloquialmente para designar a ideia temática essencial de uma peça musical. É importante compreender que este sentido de "invenção" (inventio em latim, ou heuresis em grego) tem de ser entendido numa altura em que a retórica, tal como a etimologia e filosofia natural, era uma ciência muito importante. Ou seja estamos ainda antes do tempo em que a teoria crítica dos iluminados do fim do século XVIII abandonam a retórica a favor da estética, substituindo a arte da invenção pelo poder da criatividade. Enquanto que a meio do século a corrente dominate defende que a base do génio é a invenção, já Kant pensa em 1790 (Critiques) que "a imaginação criativa é a verdadeira origem do génio e a base da originalidade".

Invenção designa portanto o tema de uma oração, mas também o mecanismo para descobrir boas ideias. Há numerosas provas de que Bach pensava, tal como os seus contemporâneos, que "invenção" era um conceito fundamental para o treino e actividade de um compositor. Como método, a invenção pertence às chamadas "divisões" da retórica tal como descritas por Cícero na sua obra De Inventione, amplamente conhecida na Alemanha do século XVIII, para qualquer pessoa com uma educação clássica mínima. Para Cícero, há 5 fases na criação de uma oração:

1. invenção (inventio)
2. disposição (dispositio)
3. estilo (elocutio)
4. memória (memoria)
5. apresentação (pronunciatio, ou actio).

Os teóricos da música do século XVIII simplificaram estas ideias, mantendo a analogia óbvia com a prática musical. Christoph Bernhard, aluno de Heinrich Schütz, reduz as 5 fases a 3:

1. descoberta (inventio)
2. amplificação (elaboratio)
3. realização (executio).

Já Mattheson tenta conciliar as duas interpretações, reforçando a ideia que música e retórica são análogas. Bach estava bem ao corrente destas ideias quando compõe as suas invenções. A primeira, em dó maior respeita as divisões com admirável clareza.

Uma análise mais detalhada excede o âmbito do nosso encontro de hoje, mas da retórica resulta um dos aspectos mais importantes do processo de criação musical: o conceito de prolongamento musical. Este conceito só estudado de uma forma sistemática no século XX pelo teórico austríaco Heinrich Schenker, revolucionando a forma como se estuda música dita tonal, através da análise e audição estrutural.

Pensamento Musical VII - O Regresso de Apolo e Dionísio: Coração e Cérebro Na Música

Arnold Schoenberg (1874-1951), muito criticado, ainda hoje, por ser demasiado intelectual, defende no seu ensaio "Apollonian Evaluation of a Dionysian Epoch" que épocas em que a experimentação enriquece o vocabulário da expressão musical alternam com outras em que as experiências anteriores são ignoradas, ou transformadas em regras rígidas que são por sua vez seguidas pelas gerações futuras. Nietzsche estabelece um contraste entre a mente apolónica, que procura proporção, moderação, ordem e harmonia, e o seu oposto, a mente dionisíaca, que é dinâmica, apaixonada, intoxicada, expansiva, creativa e, nalguns casos destrutiva. Segundo Schoenberg, para dar um exemplo, o período clássico é essencialmente apolónico, enquanto que o período seguinte, o romântico, é sobretudo dionisíaco.

O século XX é a este respeito, mais complexo. No furor do modernismo, alterna-se entre dois extremos, o impulsivo e o intelectual, em ambos os casos descontextualizados, e se um compositor tenta manter os dois elementos é imediatamente acusado de conservadorismo, vivendo expatriado numa "terra de ninguém" porque se torna mais difícil de catalogar. Era e é o caso de Schoenberg.

No seu famoso ensaio "Heart and Brain in Music", Schoenberg diz-nos que

Balzac in his philosophical story Seraphita describes one of his characters as follows: "Wilfred was a man thirty five years of age. Though Though strongly built, his proportions did not lack harmony. He was of medium height as is the case with almost all men who tower above the rest. His chest and his shoulders were broad and his neck was short, like that of men whose heart must be within the domain of the head."
No doubt all those who supposedly create cerebrally - philosophers, scientists, mathematicians, constructors, inventors, theorists, architects - keep their emotions under control and preserve the coolness of their heads even though imagination will often inspire them. But it is not generally agreed that poets, artists, musicians, actors, and singers should admit the influence of a brain upon their emotions.

Tal como coração e cérebro, harmonia e contraponto são compatíveis. São mais do que isso, na realidade. Para Heinrich Schenker, o maior teórico do século XX, a harmonia é gerada pelo contraponto. Schoenberg, apesar de não levar Schenker muito a sério (este não gosta da sua música), vai ao encontro da mesma ideia. Uma das suas maiores contribuições para a música é a chamada "música de 12 tons", uma teoria que pretende sistematizar a composição em que as dissonâncias são totalmente emancipadas, para usar um termo seu. Este sistema representa o apogeu da arte do contraponto, num certo sentido ainda mais que o de Bach, por corresponder ao contraponto no seu estado mais puro.

Mas na realidade, a música de 12 tons, considerada muito intelectual, é acima de tudo inspirada no misticismo do mesmo Seraphita de Balzac, e nas descrições do céu de Swendenborg, onde não há Norte nem Sul, nem Este nem Oeste, onde tudo pode ser percorrido em todas as direcções. Para alguns custa a crer que Verklarte Nacht tenha sido escrita pelo compositor das Variações Para Orquestra.

Ao comentário frequente de "porque é que Schoenberg não continuou a compôr no estilo de Verklarte Nacht?", ele respondia que continou a fazê-lo, só que melhor. E, na verdade, o romântico Verklarte Nacht está, também ele, repleto de processos intelectuais que seriam o orgulho de qualquer contrapontista: leitmotives com respectivas inversões, aumentações, diminuições, etc.

Claro que a utilização de processos intelectuais de crescente complexidade é um fenómeno antigo. Nos finais do século XIV, no apogeu da Ars Nova, Cordier parodiava já alguns extremos intelectuais que marcaram essa época, tanto na música como na sua na apresentação gráfica.

Ilustração: utilização de 3 níveis de hemíola, um recurso rítmico que consiste em sobrepôr 3 batimentos no espaço de 2.

Zarlino, um teórico extremamente importante do século XVI, constatava com alegria um renascer da música a seguir a um período de relativo declínio, atribuindo esse renascer a Adrian Willaert, comparando-o a Pitágoras: "[...] um dos mais raros intelectos que alguma vez praticaram música", e ainda: "[Willaert] demonstrou a ordem racional da composição de qualquer peça de forma elegante", sendo as suas composições claros modelos disso mesmo.

Em relação a isto, tal como noutros casos, vale a pena ouvir a opinião das crianças, tantas vezes sábias em assuntos profundos: numa recolha de poemas de crianças de uma escola de Lisboa, a Beatriz, do 3º ano, diz:

É a música
É a canção
É uma lenga-lenga
Que tem lá dentro
Uma tabuada.

A Beatriz acredita, tal como os grandes mestres da polifonia, que a música encerra a sua própria matemática.
Mas essa matemática não impede o coração de se manifestar.

Na mesma recolha, a Matilde, de 5 anos, diz-nos:

Quando o nosso coração
Está a bater
É sinal
Que está a falar connosco.

Por um lado o coração, mas por outro, a comunicação, domínio por excelência do racional.

De facto, penso que é difícil separar coração e cérebro, apenas se manifestam alternadamente, com primazia ora para um, ora para outro.

Wednesday, April 05, 2006

Pensamento Musical VIII - Reflexão Final

Os nossos governos obedecem a padrões mais ou menos rígidos, em que a primazia vai para as questões da economia, finanças, administração, educação (ou nalguns casos "educacionismo"). Mas a verdade é que os sistemas actuais são incapazes de resolver muitos problemas que eles próprios criaram. Talvez esteja na altura de, uma vez mais na história, olharmos para os antigos e colher os seus ensinamentos. Quem sabe se com a criação de um Ministério da Música, uma Secretaria de Estado da Retórica, uma Alta Autoridade para a Poesia Lírica se encontrassem algumas soluções. Uma coisa é certa: os poderes públicos devem prestar mais atenção às questões da criatividade, também ela um direito democrático.

David Bohm defende que a falta de criatividade gera destrutividade. Nalguns casos, assumida sem complexos. Numa audição de entrada para uma escola de música há uns tempos atrás tive este curioso diálogo com um jovem aluno:

- de que tipo de música gostas?
- metálico.
- metálico, como?
(sem hesitar) - destrutivo.

Este jovem adolescente foi admitido, e tornou-se num excelente aluno e mais tarde, excelente profissional, que recorda com nostalgia simpática os seus tempos de "metálico". Há certas fases que convém atravessar na idade certa.

Esperemos que a fase que a música actual atravessa seja igualmente uma crise de adolescência, e possamos vir a ter no futuro mais criatividade e menos destrutividade nas nossas vidas. E que a música volte um dia a exercer os seus poderes mágicos em pleno.


Bibliografia

- Grout, Donald Jay. A History of Western Music. 5th ed. W. W. Norton & Company: 1996.
- Schoenberg, Arnold. Structural Functions of Harmony. Rev. ed. W. W. Norton & Company: 1969.
- ________________. Style and Idea. Selected Writings of Arnold Schoenberg. Leonard Stein, ed. University of California Press: 1975.
- Hutin, Serge. Robert Fludd (1574-1637). Alchimiste et Philosophe Rosicrucien. Éditions Omnium Littéraire: 1971.
- Gómez de Liaño, Ignacio. Athanasius Kircher. Itinerario del Éxtasis o Las Imágenes de un Saber Universal. Ediciones Siruela: 1990.
- Mann, Alfred. The Study of the Fugue. Dover Publications, New York: 1987.
- Bohm, David. Ciência, Ordem, Criatividade. Trad. Jorge Branco. Gradiva: 1989.
- Jeppesen, Knud. Couterpoint. The Polyphonic Vocal Style of the Sixteenth Century. Dover Publications, New York: 1992.
- Dreyfus, Laurence. Bach and the Patterns of Invention. Harvard University Press: 1996.
- Guerber, H. A. The Myths of Greece and Rome. Dover Publications, New York: 1993.
- Young, G. Douglas, ed. Compact Bible Dictionary. Tyndale House Publishers: 1984.

Reflexões Sobre o Lápis

(texto escrito para o catálogo da exposição "A Riscar Uma Ideia")

“A côté d’un crayon oublié”
-Jacques Prévert


Com o aparecimento e generalização da utilização do computador, o lápis parece ter perdido, pelo menos em parte, a sua utilidade. Mesmo os mais resistentes ao desenvolvimento da tecnologia, nos quais eu me incluo, lentamente se renderam à sua eficácia. Comentários do tipo “computadores não é comigo” deram lugar a “só uso porque tem de ser”, para acabar com “como é que eu perdia tempo a escrever rascunhos e cartas à mão?!”.

No caso da música, o processo foi idêntico. Com o desenvolvimento de software especializado em notação musical, como compositor passei a ter a possibilidade de entregar as minhas partituras com apresentação profissional, sem terem de passar pelas mãos de copistas, revisores, editores, e pelos custos que isso implica.

E, no entanto, continuo a depender irracionalmente do ancestral lápis. Pelas mais diversas razões.

A utilização do computador põe, na realidade, alguns problemas. Nem de propósito: a primeira versão deste texto encontra-se, no momento em que escrevo, em parte virtual incerta devido a um crash do meu computador. Felizmente tinha o rascunho manuscrito.

Por outro lado, com o computador não se guardam rascunhos e primeiras ideias. Na composição, muitas vezes o produto final corresponde a uma sedimentação e reciclagem de ideias prévias. Só o bloco de notas nos permite estar em permanente contacto com elas.

A música é porventura a mais abstracta das formas de arte, e como tal precisa de um suporte físico. Assim como o esculptor trabalha directamente a pedra, o compositor fica mais “próximo” das notas que o lápis vai deixando ansiosamente no papel. A representação de uma peça musical não corresponde à peça em si, ao contrário da pintura, por exemplo, em que a tela é a própria obra. A notação musical (outra arte em si) é meramente um suporte material de um universo totalmente abstracto.

A nossa relação com o lápis vem de longe. Com efeito, a primeira forma de expressão artística é feita normalmente, ainda em criança, com o lápis. E sempre me maravilhou a sua característica, quase mágica, de se poder apagar, ao contrário de uma vulgar caneta.

O lápis cumpre uma missão importante, mas ingrata. A utilização do lápis corresponde à fase do trabalho que nunca se mostra a outros. Como músico executante e compositor, sinto-me particularmente exposto ao público, e fico pouco à vontade quando assistem a ensaios, ou espreitam os meus rascunhos. Porque estes esquissos são instantâneos do meu processo criativo. Concordo com o grande compositor Edgar Varèse quando diz: “quando finalmente apresento uma peça, é um produto acabado. As minhas experiências vão para o lixo”.

Injustamente, o lápis não deixa memória, para além do registo para o qual foi utilizado. Porque o lápis materializa ideias, e ao fazê-lo, desmaterializa-se, desaparece.

Tal como o carpinteiro, quando tenho uma ideia coloco o lápis atrás da orelha, para que a ideia não me fuja enquanto a confirmo ao piano. Tal como o fumador com o cigarro, brinco com o lápis para me concentrar. Em momentos de maior entusiasmo, o lápis transforma-se em batuta de maestro e ajuda-me a dirigir uma orquestra imaginária e ouvir os sons que estou a criar.

Na realidade, nunca me tinha apercebido da sua verdadeira importância até me ter sido pedido este texto. Ao votar o lápis ao esquecimento, estamos a abandonar uma parte do universo das nossas ideias.

E um lápis esquecido tem sempre mais uma história para contar.

Outubro de 2001