Friday, March 24, 2006

Miles Davis: The Complete Concert: My Funny Valentine + Four And More - Columbia 1964

(escrito para a revista Linha, do jornal Expresso)

Há 40 anos atrás um concerto de Miles Davis no Lincoln Center foi gravado e deu origem a dois discos, My Funny Valentine, e Four And More (que se encontram reeditados num CD duplo). É sem dúvida um dos mais extraordinários registos da história do Jazz.
Em 1964 Miles encontrava-se numa fase de transição. Depois de uma remodelação profunda do seu grupo em 1963, passou a contar com o pianista Herbie Hancock, Ron Carter no contrabaixo e Tony Williams, com apenas 17 anos, na bateria. No saxofone tenor George Coleman tinha a difícil tarefa de substituir John Coltrane, cuja influência no grupo ainda se fazia sentir, apesar de o ter abandonado em 1960.
Impressiona o nível de comunicação entre os músicos: a sua imaginação, capacidade de abstração numa vertente harmónica cada vez mais complexa, a sua invenção e profundidade.
É interessante assistir neste concerto à tensão criada por dois universos diferentes: uma linguagem que dava os primeiros passos rumo ao futuro, ou seja, à desconstrução da gramática musical tal como ela era conhecida até então, e outra, mais conservadora, se bem que a um nível de criatividade muito alto. De um lado Miles e a sua jovem secção rítmica, do outro George Coleman. Isto levou, escassos meses mais tarde, à sua substituição por um músico que iria com esse grupo revolucionar a música por completo pouco tempo depois: Wayne Shorter.
Parte do segredo da magia de Miles Davis reside no seu som. Miles disse que descobrira esse som graças ao seu velho professor de East St. Louis, que o aconselhou a não usar vibrato: "you'll be shaking soon enough in life", dizia. A verdade é que com ou sem vibrato Miles continua a maravilhar-nos.

Sunday, March 05, 2006

A Formação no Panorama Musical em Portugal - Algumas Reflexões

(texto escrito para o I Congresso dos Músicos)

Muito se tem discutido sobre a situação da música em Portugal, e concretamente da música portuguesa nas suas mais variadas vertentes. Apoios do Estado, mecenatos privados, quotas nas rádios, para citar alguns dos tópicos mais recorrentes. Todas essas questões são pertinentes, e relevantes no seu âmbito. Mas é preciso acrescentar um aspecto crucial para a compreensão do problema. A consolidação da produção musical no nosso país passa também, e talvez sobretudo, pela melhoria da qualidade dessa prática musical. E não pode haver melhoria sem dar uma atenção muito especial aos aspectos da formação e divulgação musicais no nosso país.

Quando falamos de formação, estamos a falar de pôr em contacto qualquer cidadão de qualquer idade e meio social com os vários níveis de actividade musical, desde o mais elementar ao mais especializado. Essa actividade deveria constituir uma pirâmide, para utilizar uma ilustração visual, em cuja base se incluiriam o ensino nas escolas, acções de divulgação, cursos para amadores, orquestras de comunidade, concertos em organizações locais, para além do ensino especializado de nível superior, com a correspondente actividade pré-profissional e profissional, que constituiria o topo da pirâmide. Temos portanto que separar ensino especializado do ensino não-especializado. Em ambos os casos muito se tem feito, mas muito está ainda por fazer.

1. Ensino não-especializado

O grande desafio consiste em encontrar formas de envolver a música na vida do dia-a-dia das pessoas (não me refiro a música de fundo nas bombas de gasolina...). Tal só será possível mudando um pouco alguns dos nossos hábitos, passando as famílias portuguesas a “consumir” um pouco mais de música de qualidade, seja de que estilo fôr, em casa. Quando falo de música de qualidade, não me refiro de forma alguma a uma visão elitista, mas sim a um tipo de música que exceda a função de pano de fundo, ou seja, música à qual se dá um pouco mais de atenção. Para demonstrar a dificuldade de tal objectivo, basta referir que esse tipo de música não está em geral facilmente disponível: para dar um exemplo, refira-se a quase total ausência de música de qualidade na televisão, já para não falar de programas de cariz pedagógico (o tão badalado serviço público de televisão…).

No capítulo da iniciação musical a nível nacional, é justo reconhecer o papel importante das filarmónicas pelo país fora (para além de uma função social fundamental). Graças a elas, milhares de crianças e jovens têm acesso à prática musical, de outra forma só ao alcance daqueles que têm acesso aos relativamente poucos conservatórios do país. Mas por outro lado as filarmónicas deveriam ser mais responsabilizadas pelos apoios que recebem. Abrilhantar as festas da freguesia não chega. Maestros melhor preparados, repertórios mais estimulantes e maior exigência de qualidade deveriam ser o apanágio dessas organizações. Com as devidas excepções, que as há, felizmente, e onde tal já acontece, estas melhorias teriam um impacto enorme na “formação musical” em Portugal. As filarmónicas poderiam também colaborar com as escolas de ensino básico, facultando a utilização de alguns instrumentos, afinal a grande dificuldade destas em promover ensino musical prático.

O passo verdadeiramente decisivo no ensino da música em Portugal deverá no entanto ser dado justamente nas escolas de ensino básico. Enquanto tal não acontecer, todos os esforços estarão limitados por uma questão verdadeiramente estrutural: o facto de a música estar reservada a um grupo extremamente minoritário da população. A educação, como direito democrático que é, consiste em tornar acessível às pessoas as várias vertentes do saber e das actividades da sociedade. Não se trata de forçar toda a gente a estudar música. Não podemos é aceitar que jovens deixem de se dedicar à música (como a qualquer outra área) por não terem tido acesso a ela.

Só escolas dotadas de instrumentos e aulas práticas de música (pequenos grupos, orquestras, grupos corais), cujo objectivo será essencialmente estimular o gosto pela música, e não afastar alunos em nome dum qualquer conceito pedagógico de suposto rigor e academismo, farão verdadeiramente a diferença. Não é por acaso que essa é precisamente a situação nos países com tradição musical mais forte: Alemanha, Reino Unido, Estados Unidos, França. Claro que levar a cabo este projecto de uma forma integrada tem custos. Mas passa também por vontade política, que tem faltado: foi recentemente elaborado para o Ministério da Educação um programa para uma disciplina opcional do 12º ano chamada “Cultura Musical” que ainda espera a sua aplicação. Sempre seria um primeiro passo.

Outro aspecto importante na divulgação é o desenvolvimento do circuito dos “pequenos” concertos, actualmente muito reduzido, não permitindo prática profissional aos jovens músicos. Este circuito poderia incluir clubes recreativos das freguesias, bibliotecas, escolas, igrejas, museus, etc. onde, por preços muito reduzidos as comunidades teriam acesso a vários tipos de música, enquanto que os jovens músicos veriam a oportunidade de ganhar prática de concertos, uma vez que a prática nas escolas não é suficiente. A aposta nos jovens músicos é também, em grande parte, a aposta na formação de públicos.

2. Ensino especializado

O investimento no ensino da música em Portugal passa obrigatoriamente por dar melhores condições às escolas de música e conservatórios do país. Temos o exemplo do Conservatório Nacional de Lisboa, que não dispõe de uma sala para ensaiar uma orquestra completa, para não referir o adiamento constante de obras urgentes. Raras são as escolas e conservatórios que dispõem de salas individuais de estudo para prática instrumental. Ou seja, as escolas de música devem ter características próprias, e nem sempre o aproveitamento de espaços que foram concebidos para outros fins (caso da larguíssima maioria das escolas de música em Portugal) resulta satisfatoriamente.

Outro problema comum a muitos cursos no nosso país, incluindo os cursos superiores mais recentes nesta área é a ausência de bibliotecas e mediatecas especializadas. Como pode haver investigação académica séria sem esses meios fundamentais? Portugal deve ser dos países do mundo ocidental desenvolvido onde se tiram mais fotocópias no ensino superior. Fotocopia-se porque é quase impossível comprar, ou é quase impossível comprar porque se fotocopia tudo? Boas bibliotecas ajudariam a ultrapassar este problema. É essencial formar mais investigadores, e em áreas não somente restritas à música erudita. Temos alguns investigadores de renome em algumas universidades, mas quase sempre com obra publicada sobre música erudita portuguesa. Essa área de estudo é fundamental, mas não nos podemos limitar a ela. É também necessária mais actividade académica, com mais visibilidade. Mais estudos publicados, maior regularidade, mais publicações especializadas, mais livros em português.

Tal como noutras formas de arte (assim como muitas outras profissões), na música é crucial o contacto com outras experiências, porventura em centros de grande cultura musical. Desta forma, deveria ser parte integrante do desenvolvimento do jovem músico profissional o estudar e adquirir experiência noutros países. A dificuldade neste caso passa pela enorme carência de bolsas para estudo no estrangeiro, e, quando essas existem, são quase sempre restringidas à música erudita: não existe nenhuma bolsa regular para Jazz, em qualquer instituição portuguesa, pública ou privada, para dar um exemplo.

Por outro lado o reconhecimento oficial dos cursos de música prejudica os alunos: conservatórios equiparados a ensino básico (com investimento em horas de estudo muito superior a alguns cursos superiores), cursos superiores muito recentes, com alunos muitas vezes impreparados para estudos desse nível. Está em curso a discussão pública do Regulamento do Ensino Artístico, que esperamos não ignore estes e outros problemas.

Muitas coisas boas se têm feito em Portugal no passado recente: escolas profissionais, melhores cursos superiores, acções de formação regulares. Os problemas culturais e estruturais representam um desafio maior, e só uma visão completa do fenómeno poderá ajudar a ultrapassar dificuldades, e potenciar os esforços já existentes nesta área.

Friday, March 03, 2006

Vanguarda e R&B: A Música de Ornette Coleman

Em 1959, ao abrir uma série de concertos no famoso clube nova-iorquino Five Spot, (texto escrito para a colecção "Let's Jazz In Público", Fevereiro de 2005)

Ornette Coleman chamou a atenção do mundo do jazz. Aparecendo a tocar num saxofone de plástico branco, com uma sonoridade estranha e uma linguagem musical desconcertante, baseada num suporte temático aparentemente simples, quase infantil, era acompanhado por Don Cherry no seu pocket trumpet, e uma secção rítmica composta por Charlie Haden no contrabaixo e Billy Higgins na bateria. A principal novidade era que os improvisos não obedeciam a uma série de acordes pré-definidos, como seria de esperar na época.

Com o succès de scandale que costuma marcar as revoluções artísticas, Ornette fazia história. O seu estilo não tinha precedentes, e tanto o público como a crítica não sabiam muito bem como reagir. A sua música era inclassificável. As opiniões sobre esta música oscilavam entre dois extremos: Leonard Bernstein considerou-a genial, Roy Eldridge uma fraude.
Ornette não era o único a explorar esta via. Outros, como Cecil Taylor, eram ainda desconhecidos, mas trilhavam o mesmo caminho. Claro que o estilo não nasceu do nada. Antes de ir para Nova Iorque o seu grupo teve vários anos de experimentação, em que foram reequacionados todos os aspectos do jazz, como ritmo, melodia, harmonia, sonoridade, fraseado, estrutura. A esta música, que lhe surgia naturalmente, chamaria "free jazz".

Os limites da sujeição aos acordes são explicados pelo próprio: "Using changes [série de acordes] [...] lets the audience know what you're doing. But that means you're not playing all your own music, or all the music you're playing's not yours".
Depois de utilizar vários pianistas, como Don Friedman, Paul Bley e Walter Norris, decidiu-se por retirar o piano do seu grupo para ter mais liberdade melódica, sem restrições harmónicas. Com o baterista Ed Blackwell, de Nova Orleãs, no lugar de Billy Higgins, o grupo apura o seu estilo, com o ritmo mais solto, e mais interactivo com o solista.

A secção rítmica não se limita a acompanhar. Tem uma responsabilidade acrescida no resultado final, do ponto de vista da interacção musical. Desta forma, obrigou os seus músicos a repensar a abordagem aos seus próprios instrumentos.
Para Ornette a expressão pessoal é o mais importante. O que ele gostava mais era de ver alguém fazer aquilo que melhor sabia, fosse em que área fosse. Sobre um malabarista que ele observou em frente ao Radio City Music Hall, em Nova Iorque, comentou mais tarde que fora a obra de arte mais bela que alguma vez tinha visto.

O seu estilo é muito marcado pela sua passagem por bandas de rhythm & blues, o que torna a sua música menos abstracta, mais alegre e rítmica, o que permite uma leitura mais fácil, apesar da complexidade da gramática musical. Uma afinação muito pessoal, utilização de multifónicos (produção de vários sons em simultâneo), efeitos sonoros, sonoridade poderosa, glissandi, etc., tudo contribui para o seu estilo como saxofonista. Acima de tudo ele pretende encontrar a voz humana no seu som: "You can always reach into the human sound of a voice on your horn if you're actually hearing and trying to express the warmth of a human voice". Na realidade, Ornette era mais respeitado como compositor do que como saxofonista.

Mas, como a maioria dos músicos da sua geração, Ornette começou no bebop e no blues. Nasceu em 1930 e começou a tocar aos 14 anos. Oriundo do Texas, de uma família pobre, nunca teve uma educação musical formal. Começa a tocar saxofone na escola, e desde logo com alguns amigos de infância com quem viria a gravar mais tarde: o baterista Charles Moffett, o saxofonista Dewey Redman e o trompetista Bobby Bradford. Aos 17 anos tinha já o seu próprio grupo. Segue-se uma temporada em várias bandas de rhythm & blues onde vai desenvolvendo gradualmente o seu estilo.

O que aliás lhe vai causar problemas. No Mississipi é despedido por ter ensinado um tema de bebop a alguns membros do grupo. Noutra ocasião, em Nova Orleãs, depois de um solo particularmente arrojado, alguns rufias dão-lhe uma sova e destroem-lhe o saxofone. Em 1954 vai para Los Angeles onde ganhava a vida como ascensorista, aproveitando as subidas e descidas do elevador para estudar teoria musical. Frequentava jam sessions, onde muitas vezes era hostilizado, até pelo grande saxofonista Dexter Gordon. Mas é aqui que se rodeia de músicos que acreditam na sua música e com quem ele vai apurar o seu estilo, nomeadamente três que vão ter um papel importante no seu desenvolvimento: o trompetista Don Cherry, o contrabaixista Charlie Haden e o baterista Billy Higgins.

O produtor Lester Koenig, dono da Contemporary Records, decide apostar nele. Em Somethin' Else: The Music of Ornette Coleman (1958), usa ainda uma secção rítmica convencional (Walter Norris no piano, Don Payne no contrabaixo e na bateria Billy Higgins, para além de Don Cherry no trompete), mas em Tomorrow is the Question!, experimenta pela primeira vez um grupo sem piano. Em 1959, com a ajuda de John Lewis e Percy Heath, muda-se para Nova Iorque, onde estuda temporariamente na Lenox School of Jazz (com Lewis e Gunther Schuller).

Mas o que marca verdadeiramente a mudança de estilo é a transição para a Atlantic Records que vai dar origem à fase "clássica" de Ornette, com algumas das suas gravações mais importantes e composições mais apreciadas. Desta vez pode gravar com a sua secção rítmica, com Haden e Higgins. Em 1959 grava The Shape of Jazz to Come, que contém o famoso "Lonely Woman".

Ornette sempre idolatrou Charlie Parker, do qual se considera legítimo herdeiro: "Bird would have understood us. He would have approved our aspiring to something beyond what we inherited." A sua admiração por Parker continuou, e em 1985 grava "Word for Bird".

De facto a música desta fase deve muito ao seu mentor: o espírito bebop está bem presente, a preferência por estruturas convencionais tipo blues, utilização preferencial do registo médio e agudo do saxofone. No entanto, desde então que queria fugir aos clichés desse mesmo bebop.

Em 1960 forma um octeto, que consiste no seu próprio quarteto (com Cherry, Haden e agora Ed Blackwell na bateria) ao qual juntou o quarteto do saxofonista e multi-instrumentista Eric Dolphy (com Freddie Hubbard no trompete, Scott LaFaro no contrabaixo e Billy Higgins). Com este grupo vai para estúdio e grava Free Jazz, talvez a maior referência para o movimento de vanguarda que iria florescer na década de 60. O produtor não consegue refrear o seu entusiasmo e põe na capa, para acentuar o carácter vanguardista, uma reprodução de um quadro de Jackson Pollock, e como subtítulo, escreve "a collective improvisation by the Ornette Coleman double quartet". Trata-se de facto de uma improvisação colectiva, aparentemente sem restrições, com a duração de 36 minutos ininterruptos.

Apesar de uma liberdade no improviso sem precedentes, Ornette não abandona algumas "normas" que vão marcar a sua música nos anos seguintes. Por um lado, o ritmo puro e simples, com groove, e até, por vezes, swing. Por outro a liberdade no gesto, tanto melódico como rítmico. O efeito resulta numa oposição de contrastes, e ocasionalmente aparecem temas, curtos motivos partilhados por todos, que dão à peça uma relativa unidade composicional.

Em 1965, depois de uma fase de retiro artístico, na qual procurou novas formas de se exprimir, reaparece em concertos na Europa a tocar, para além do saxofone, trompete e violino. Ornette considerava a utilização destes instrumentos uma forma de acrescentar côr à sua música.

Para além do seu trabalho como improvisador, sente-se gradualmente atraído pela composição para grupos da área da música erudita. Já tinha utilizado um quarteto de cordas num célebre concerto em Town Hall em 1962, e continuou a escrever para essa formação, mas também para quinteto de sopros ("Sounds and Forms for Wind Quintet", 1965), e também para orquestra sinfónica ("Skies of America", 1971), estreada pela London Symphony.

Em 1966 grava The Empty Foxhole com Charlie Haden e o seu filho Denardo Coleman na bateria, na altura com 10 anos de idade, e que viria a ser um dos esteios do seu grupo nas décadas seguintes. A partir desta altura a sua música parece começar a seguir uma direcção muito própria, em que se fundem elementos de R&B, rock, jazz e world music, como se pode ouvir em Science Fiction, de 1971. Ornette iria explorar, a partir desse momento, os sons da fusão.

Uma viagem a Marrocos em 1973 e a audição de vários grupos locais vai marcá-lo profundamente, justamente pela sua capacidade de juntar elementos de enorme sensualidade a uma liberdade de improvisação sem limites.

Em 1975 forma o grupo eléctrico Prime Time, em que tenta juntar a improvisação mais sofisticada e criativa ao apelo rítmico do rhythm & blues, mais característico da música pop. Paralelamente a esta inflexão, sente a necessidade de teorizar sobre o seu processo criativo. Isso dá origem ao conceito de Harmolodic Theory, ou Harmolodics. Trata-se de um conceito vago, que o próprio não sabe explicar claramente, que está supostamente na base da sua produção musical a partir dos anos 70. "Using the melody, the harmony, and the rhythm all equal." Ou, numa visão mais abstracta e certamente mais feliz: "melody, harmony, and the instrumentation of movement of forms." (Geralmente, tal como afirma o compositor Gunther Schuller, as suas afirmações sobre música são bastante obscuras, e por vezes mesmo contraditórias).

Será que Ornette deixou alguma vez de ser um músico de rhythm & blues? Talvez não, e talvez seja essa a marca que o distingue de outros representantes das correntes de vanguarda no jazz. Desde a sua fase de "bebop progressivo" à música eléctrica de Prime Time, passando pelo desbravar do free jazz (a seguir ao qual se retirou, deixando a porta aberta para outros o explorarem), Ornette nunca abandonou uma certa visceralidade na execução, apesar de já não se deitar de costas no chão e bater os pés no clímax dos seus solos, como quando imitava o saxofonista Big Jay McNeely, um dos seus ídolos da adolescência.

Numa entrevista ao New York Times, em 1981, afirmou: "People have started asking me if I'm really a rhythm-and-blues player, and I always say, why, sure. To me, rhythm is the oxygen that sits under the notes and moves them along, and blues is the coloring of those notes, how they're interpreted in an emotional way".

Ou ainda, noutra entrevista com um tom poético que marca muitas das suas intervenções sobre música: "the theme you play at the start of a number is the territory, and what comes after, which may have very little to do with it, is the adventure".
Aventura implica imprevisto, sorte, acaso, perigo, risco. Afinal de contas, as marcas da música de Ornette Coleman. E Ornette Coleman é a sua música. Nas suas palavras, a sua vida para além da música é igual à de toda a gente: "born, work, sad and happy and etc."

Wednesday, March 01, 2006

Virgil Thompson e Four Saints in Three Acts

(Conferência no Teatro São Carlos, 21 de Fevereiro de 2002)

Four Saints in three Acts foi estreado no Wadsworth Atheneum, em Hartford, em 1934. Levada à cena por uma organização chamada “Friends and Enemies of Modern Music”, revelou-se um enorme sucesso desde o início. Com um grande impacto mediático, foi apresentada na Broadway, onde ficou 8 semanas, o que constituiu um record para uma ópera.

Virgil Thompson, até então excluído do establishment musical americano, que ele aliás rejeitava, torna-se de repente no compositor mais badalado da época.

Com um cast integralmente composto por negros, o que acontecia provavelmente pela primeira vez, escolhidos pela clareza da sua dicção e forma de viver a religiosidade, que contribuiu para o succès de scandale da ópera, tornou-se num marco do modernismo americano.

A música, com a sua simplicidade aparente, foi considerada reaccionária por uns ou revolucionária por outros, numa altura em que a complexidade harmónica e rítmica estava em grande força. Mas sempre foi considerada genuinamente americana.

Esta peça mudou a história da ópera americana, sobretudo pelo impulso da sua dramaturgia, mais do que a música em si, tendo sido reconhecida por compositores tão diversos como John Cage, Philip Glass, e muitos outros.

Virgil Thompson nasceu a 25 de Novembro de 1896, em Kansas City. Desde cedo se revelou um verdadeiro prodígio intelectual, musical e literário, tendo-se tornado provavelmente no primeiro a ser simultaneamente músico, escritor e crítico profissional.

A música da sua infância vai marcar o seu estilo para sempre: canções da guerra civil, de cowboys, blues, hinos da igreja Baptista, folclore, assim como as obras de referência da música ocidental que ele estudava afincadamente.

Aos 12 anos tocava orgão nas igrejas, improvisando e impressionando a congregação com o seu estilo sofisticado. Aluno brilhante, leitor assíduo, hesita sobre se deveria ser músico ou escritor.

Em 1917 vai para Nova Iorque, onde frequenta igrejas anglicanas e católicas, fascinado pelo canto gregoriano que nelas se ouvia.
Em 1919 vai para Harvard, com uma bolsa de estudo paga pela Igreja Mormon. Estuda contraponto com um especialista em música coral e música sacra dos séc. 15 e 16.
É nesta altura que conhece as obras de Gertrude Stein e Erik Satie, que terão uma influência decisiva no seu desenvolvimento artístico.

Em 1921 viaja pela Europa, conhece Poulenc e Milhaud, e sente-se cada vez mais atraído pelo universo intelectual que aì se respira: Cocteau, Honneger, e de uma forma geral, todos os modernistas das várias áreas dessa época.

Tal como Copland, estuda com Nadia Boulanger em Paris, mas não se impressiona tanto como Elliott Carter, Roy Harris e outros que com ela também estudavam (grupo ao qual Thompson chamava “Boulangerie”).
Boulanger admirava Rameau, Couperin pela sua clareza e retórica. Nesta época Stravinsky (seu amigo) era o maior representante do neo-classicismo. Esta procura da clareza do discurso vai no entanto marcar o seu estilo.

Em seguida regressa a Boston, onde é organista na King’s Chapel (como Charles Ives), onde se fez notar improvisando com harmonias arrojadas. Conhece Maurice Grosser, de quem ficará muito próximo toda a vida (viverá com ele em Paris mais tarde).

Em 1924 começa a sua carreira profissional de escritor: o editor da revista American Mercury pede-lhe um artigo sobre Jazz, e é assim publicada a 1ª discussão séria sobre esse tema.

Regressa a Paris em 1925, desiludido com Nova Iorque e Boston. Nas suas palavras: “I prefer to starve where the food is good”.
Encontra então uma cidade que fervilha de actividade artística e criativa, assim como social e política. Fala-se de um renascimento intelectual. Conhece, através de George Antheil, Gertrude Stein, com quem estabelece uma empatia pessoal muito forte, e integra o círculo artístico e intelectual parisiense.

James Joyce ficou muito impressionado com a inteligência de Thompson, e também com a sua música (conheceram-se igualmente através de George Antheil). Propôs-lhe uma colaboração num ballet baseado no Finnegans Wake. Thompson recusou (!) por lealdade para com Gertrude Stein, que teria considerado tal colaboração uma traição.

Aliás existe um historial de rivalidades entre Stein e os outros modernistas da época:

-cortou relações com Ezra Pound depois de este ter partido acidentalmente uma cadeira em sua casa.
-T. S. Eliot reconhecia o poder da sua escrita, mas escreve, alarmado:

“...its rhythms have a peculiar hypnotic power not met with before. It has a kinship with the saxophone. If this is the future, then the future is, as it very likely is, of the barbarians. But this is the future in which we ought not be interested.”

-Admirava James Joyce, o único verdadeiramente à sua altura (na sua opinião), mas a rivalidade existia da mesma forma. Quando a editora Shakespeare and Company publicou Ulisses, Stein cortou relações com a proprietária. Nunca se conheceram, apesar de terem vivido muito perto um do outro. Só nos anos 30, com Joyce quase cego, é que eles são apresentados numa festa, ao que Joyce comenta: “How strange that we share the same quartier and have never met”. Resposta seca de Stein: “Yes”.

É nesta altura que o seu estilo começa a ser apurado. Nâo se identifica com o estilo “pesado” de Bruckner e Mahler, nem com o que ele chama “complexo germano-americano”, numa referência aos movimentos da vanguarda musical dos seus compatriotas dessa época.

É por esta razão que ele era considerado um “desalinhado” em relação a esses movimentos, por recusar métodos rígidos, ou sistemas que prendessem a sua liberdade criativa. Não esqueçamos que em 1923 Arnold Schoenberg começava a utilizar formalmente o serialismo nas suas composições.

Por isso não espanta que tenha dito a Pierre Boulez, em 1946:

“...by using a carefully thought out and complex way, you produce by 30 a handful of unforgettable works. But by then you are a prisoner of your method...so you write less and less...without freedom, no one is a master.”

Pelo contrário, acredita que as obras-primas musicais são frequentemente escritas numa fase tardia do compositor: Parsifal, Falstaff, os últimos quartetos de Beethoven, a Arte da Fuga, entre outros exemplos, comprovam esta ideia (ideia essa contrária à do seu amigo Honneger, que dizia que dos 45 para os 50, o compositor atravessa uma profunda crise, pois passa de “jovem promissor” a “vieil imbécile”).

Thompson sempre afirmou que os seus talentos foram trazidos à maturidade por Gertrude Stein e Erik Satie.

Para Satie a música tem de ser funcional em qualquer contexto: rua, cafés, circo, ou cabaré.
Da mesma forma, para Thompson, a música devia ser tão simples quanto uma conversa amigável.

Íntimo e admirador do grupo Les Six, consegue desenvolver um estilo americano, apesar de todas as influências francesas.

Quanto à influência de Stein podemos referir o efeito funcional do texto: cor, som, ritmo, técnicas inspiradas pelos quadros cubistas que ela tinha no seu apartamento da Rue de Fleurus, em Paris, uma vez que era amiga de Picasso, Marcel Duchamp, Maurice Grosser, e outros.

Na música esta ideia estará representada pela justaposição de ambientes, ritmos, harmonias e estilos.

Em 1927 Thompson começa a trabalhar na ópera. Four Saints in Three Acts (1927-1933) é a primeira das suas 2 óperas com libretto de Gertrude Stein. Thompson já tinha utilizado textos de Stein em peças anteriores para canto e piano: “Susie Asado” (1926), “Preciosilla” (1927), “Capital, Capitals” (1927). Sentia-se agora pronto a trabalhar numa peça de maior fôlego.

Thompson considerava a peça uma alegoria da vida quotidiana de pessoas criativas como eles, a aproveitar a vida moderna de Paris. Os santos estão concentrados em aspectos não materiais, como escrever uma ópera, ou passear pelo céu, no sua percurso para se tornarem santos.

Stein nunca foi explícita em relação ao seu texto. Gostava de Espanha, com o seu povo, as suas paisagens e os seus santos.

Thompson sempre acreditou que Stein se imaginava como Santa Teresa, enquanto que James Joyce, que ela pensava ser o seu único rival, era Santo Inácio. Uma leitura possível, uma vez que Stein nunca escondeu a sua rivalidade com os outros modernistas.

Apesar de nem Thompson nem Stein serem religiosos, há uma sensação de desejo de regresso ao Paraíso perdido, que Thompson sempre admitiu (há um elemento de contradição na religiosidade de Stein: sempre a negou, assim como a existência de vida no além, mas, no entanto, Alice B. Toklas, também judia, companheira de Stein, converteu-se ao catolicismo para poder juntar-se à sua “amada” depois da sua morte). Talvez por isso não haja tensão, conflito ou maldade na ópera. É um desfile de misticismo religioso, inocente e alegre, concebido por duas pessoas não religiosas.

A ópera tem um estilo muito peculiar, com uma música essencialmente diatónica, com pequenos módulos motívicos repetidos e sequências. De uma certa forma, e isso talvez explique em parte o seu sucesso, junta todos os elementos que as óperas tradicionais têm: arias, duetos, trios, momentos líricos, coro, etc., tudo isto num estilo deliberadamente idiossincrático.

Contrastando com os seus elementos tradicionais como cadências, sequências, tonalismo, motivos melódicos e rítmicos, aparecem elementos não-tradicionais tirando partido do ritmo das frases com notas repetidas muito bem articuladas.

Outro aspecto que talvez ajude a explicar o sucesso da ópera, é que ela é escrita para o público, apesar do modernismo aparentemente incompreensível do texto.

Thompson pressupõe que o seu público é educado e sofisticado. Facto ainda mais relevante considerando que ele não dissocia a obra de arte do seu público:

“It used to amuse me in Spain that it should take three children to play bullfight. One plays bull and another plays torero, while the third cries “ole!” Music is like that. It takes two people to make music properly, one man to write it, another to play it, and a third to criticize it. Anything else is just a rehearsal”.

Para Thompson, a música de Four Saints é uma homenagem a Kansas City.

A sua harmonia diatónica e cadências plagais são referências aos Hinos Protestantes, as passagens parlando referem-se ao canto da liturgia Anglo-Saxónica, o seu pot-pourri de mudanças de tempo e sonoridades remete para o universo sonoro do Midwest americano do séc. 19. Um coro Baptista com o seu harmonium (orgão de palheta), valsas, tangos, foxtrots, folk songs, música de rua, ragtime, marchas, tudo isto se ouve na ópera.

Por tudo isto, e por uma certa nostalgia do passado, fica no ar uma sensação de felicidade ao longo da peça.

De uma forma geral, as dissonâncias são evitadas, porque afectariam a energia do texto. A música é uma anotação do texto, não sugere emoções ou sentimentos que não existem no libretto. A música nunca põe em causa o ritmo nem a articulação do texto. Inversamente, sem o texto a música não tem o mesmo sentido.

Tal como nas suas canções, a clareza da prosódia nunca é posta em causa. Partilhava, com Samuel Barber num estilo muito diferente, a paixão da linguagem. O segredo da escrita de Four Saints reside na forma como o texto é musicado. Nas suas palavras:

“My hope in putting Gertrude Stein to music had been to break, crack open, and solve for all time anything still waiting to be solved, which was almost everything, about English musical declamation. My theory was that if a text is set correctly for the sound of it, the meaning will take care of itself. And the Stein texts, for prosodizing in this way, were manna. With meanings already abstracted, or absent, or so multiplied that choice among them was impossible, there was no temptation toward tonal illustration, say, of birdie babbling by brook or heavy heavy hangs my heart. You could make a setting for sound and syntax only, then add, if needed, an accompaniment equally functional. I had no sooner put to music after this recipe one short Stein text than I knew I had opened the door.”