(Conferência no Teatro São Carlos, 21 de Fevereiro de 2002)
Four Saints in three Acts foi estreado no Wadsworth Atheneum, em Hartford, em 1934. Levada à cena por uma organização chamada “Friends and Enemies of Modern Music”, revelou-se um enorme sucesso desde o início. Com um grande impacto mediático, foi apresentada na Broadway, onde ficou 8 semanas, o que constituiu um record para uma ópera.
Virgil Thompson, até então excluído do establishment musical americano, que ele aliás rejeitava, torna-se de repente no compositor mais badalado da época.
Com um cast integralmente composto por negros, o que acontecia provavelmente pela primeira vez, escolhidos pela clareza da sua dicção e forma de viver a religiosidade, que contribuiu para o succès de scandale da ópera, tornou-se num marco do modernismo americano.
A música, com a sua simplicidade aparente, foi considerada reaccionária por uns ou revolucionária por outros, numa altura em que a complexidade harmónica e rítmica estava em grande força. Mas sempre foi considerada genuinamente americana.
Esta peça mudou a história da ópera americana, sobretudo pelo impulso da sua dramaturgia, mais do que a música em si, tendo sido reconhecida por compositores tão diversos como John Cage, Philip Glass, e muitos outros.
Virgil Thompson nasceu a 25 de Novembro de 1896, em Kansas City. Desde cedo se revelou um verdadeiro prodígio intelectual, musical e literário, tendo-se tornado provavelmente no primeiro a ser simultaneamente músico, escritor e crítico profissional.
A música da sua infância vai marcar o seu estilo para sempre: canções da guerra civil, de cowboys, blues, hinos da igreja Baptista, folclore, assim como as obras de referência da música ocidental que ele estudava afincadamente.
Aos 12 anos tocava orgão nas igrejas, improvisando e impressionando a congregação com o seu estilo sofisticado. Aluno brilhante, leitor assíduo, hesita sobre se deveria ser músico ou escritor.
Em 1917 vai para Nova Iorque, onde frequenta igrejas anglicanas e católicas, fascinado pelo canto gregoriano que nelas se ouvia.
Em 1919 vai para Harvard, com uma bolsa de estudo paga pela Igreja Mormon. Estuda contraponto com um especialista em música coral e música sacra dos séc. 15 e 16.
É nesta altura que conhece as obras de Gertrude Stein e Erik Satie, que terão uma influência decisiva no seu desenvolvimento artístico.
Em 1921 viaja pela Europa, conhece Poulenc e Milhaud, e sente-se cada vez mais atraído pelo universo intelectual que aì se respira: Cocteau, Honneger, e de uma forma geral, todos os modernistas das várias áreas dessa época.
Tal como Copland, estuda com Nadia Boulanger em Paris, mas não se impressiona tanto como Elliott Carter, Roy Harris e outros que com ela também estudavam (grupo ao qual Thompson chamava “Boulangerie”).
Boulanger admirava Rameau, Couperin pela sua clareza e retórica. Nesta época Stravinsky (seu amigo) era o maior representante do neo-classicismo. Esta procura da clareza do discurso vai no entanto marcar o seu estilo.
Em seguida regressa a Boston, onde é organista na King’s Chapel (como Charles Ives), onde se fez notar improvisando com harmonias arrojadas. Conhece Maurice Grosser, de quem ficará muito próximo toda a vida (viverá com ele em Paris mais tarde).
Em 1924 começa a sua carreira profissional de escritor: o editor da revista American Mercury pede-lhe um artigo sobre Jazz, e é assim publicada a 1ª discussão séria sobre esse tema.
Regressa a Paris em 1925, desiludido com Nova Iorque e Boston. Nas suas palavras: “I prefer to starve where the food is good”.
Encontra então uma cidade que fervilha de actividade artística e criativa, assim como social e política. Fala-se de um renascimento intelectual. Conhece, através de George Antheil, Gertrude Stein, com quem estabelece uma empatia pessoal muito forte, e integra o círculo artístico e intelectual parisiense.
James Joyce ficou muito impressionado com a inteligência de Thompson, e também com a sua música (conheceram-se igualmente através de George Antheil). Propôs-lhe uma colaboração num ballet baseado no Finnegans Wake. Thompson recusou (!) por lealdade para com Gertrude Stein, que teria considerado tal colaboração uma traição.
Aliás existe um historial de rivalidades entre Stein e os outros modernistas da época:
-cortou relações com Ezra Pound depois de este ter partido acidentalmente uma cadeira em sua casa.
-T. S. Eliot reconhecia o poder da sua escrita, mas escreve, alarmado:
“...its rhythms have a peculiar hypnotic power not met with before. It has a kinship with the saxophone. If this is the future, then the future is, as it very likely is, of the barbarians. But this is the future in which we ought not be interested.”
-Admirava James Joyce, o único verdadeiramente à sua altura (na sua opinião), mas a rivalidade existia da mesma forma. Quando a editora Shakespeare and Company publicou Ulisses, Stein cortou relações com a proprietária. Nunca se conheceram, apesar de terem vivido muito perto um do outro. Só nos anos 30, com Joyce quase cego, é que eles são apresentados numa festa, ao que Joyce comenta: “How strange that we share the same quartier and have never met”. Resposta seca de Stein: “Yes”.
É nesta altura que o seu estilo começa a ser apurado. Nâo se identifica com o estilo “pesado” de Bruckner e Mahler, nem com o que ele chama “complexo germano-americano”, numa referência aos movimentos da vanguarda musical dos seus compatriotas dessa época.
É por esta razão que ele era considerado um “desalinhado” em relação a esses movimentos, por recusar métodos rígidos, ou sistemas que prendessem a sua liberdade criativa. Não esqueçamos que em 1923 Arnold Schoenberg começava a utilizar formalmente o serialismo nas suas composições.
Por isso não espanta que tenha dito a Pierre Boulez, em 1946:
“...by using a carefully thought out and complex way, you produce by 30 a handful of unforgettable works. But by then you are a prisoner of your method...so you write less and less...without freedom, no one is a master.”
Pelo contrário, acredita que as obras-primas musicais são frequentemente escritas numa fase tardia do compositor: Parsifal, Falstaff, os últimos quartetos de Beethoven, a Arte da Fuga, entre outros exemplos, comprovam esta ideia (ideia essa contrária à do seu amigo Honneger, que dizia que dos 45 para os 50, o compositor atravessa uma profunda crise, pois passa de “jovem promissor” a “vieil imbécile”).
Thompson sempre afirmou que os seus talentos foram trazidos à maturidade por Gertrude Stein e Erik Satie.
Para Satie a música tem de ser funcional em qualquer contexto: rua, cafés, circo, ou cabaré.
Da mesma forma, para Thompson, a música devia ser tão simples quanto uma conversa amigável.
Íntimo e admirador do grupo Les Six, consegue desenvolver um estilo americano, apesar de todas as influências francesas.
Quanto à influência de Stein podemos referir o efeito funcional do texto: cor, som, ritmo, técnicas inspiradas pelos quadros cubistas que ela tinha no seu apartamento da Rue de Fleurus, em Paris, uma vez que era amiga de Picasso, Marcel Duchamp, Maurice Grosser, e outros.
Na música esta ideia estará representada pela justaposição de ambientes, ritmos, harmonias e estilos.
Em 1927 Thompson começa a trabalhar na ópera. Four Saints in Three Acts (1927-1933) é a primeira das suas 2 óperas com libretto de Gertrude Stein. Thompson já tinha utilizado textos de Stein em peças anteriores para canto e piano: “Susie Asado” (1926), “Preciosilla” (1927), “Capital, Capitals” (1927). Sentia-se agora pronto a trabalhar numa peça de maior fôlego.
Thompson considerava a peça uma alegoria da vida quotidiana de pessoas criativas como eles, a aproveitar a vida moderna de Paris. Os santos estão concentrados em aspectos não materiais, como escrever uma ópera, ou passear pelo céu, no sua percurso para se tornarem santos.
Stein nunca foi explícita em relação ao seu texto. Gostava de Espanha, com o seu povo, as suas paisagens e os seus santos.
Thompson sempre acreditou que Stein se imaginava como Santa Teresa, enquanto que James Joyce, que ela pensava ser o seu único rival, era Santo Inácio. Uma leitura possível, uma vez que Stein nunca escondeu a sua rivalidade com os outros modernistas.
Apesar de nem Thompson nem Stein serem religiosos, há uma sensação de desejo de regresso ao Paraíso perdido, que Thompson sempre admitiu (há um elemento de contradição na religiosidade de Stein: sempre a negou, assim como a existência de vida no além, mas, no entanto, Alice B. Toklas, também judia, companheira de Stein, converteu-se ao catolicismo para poder juntar-se à sua “amada” depois da sua morte). Talvez por isso não haja tensão, conflito ou maldade na ópera. É um desfile de misticismo religioso, inocente e alegre, concebido por duas pessoas não religiosas.
A ópera tem um estilo muito peculiar, com uma música essencialmente diatónica, com pequenos módulos motívicos repetidos e sequências. De uma certa forma, e isso talvez explique em parte o seu sucesso, junta todos os elementos que as óperas tradicionais têm: arias, duetos, trios, momentos líricos, coro, etc., tudo isto num estilo deliberadamente idiossincrático.
Contrastando com os seus elementos tradicionais como cadências, sequências, tonalismo, motivos melódicos e rítmicos, aparecem elementos não-tradicionais tirando partido do ritmo das frases com notas repetidas muito bem articuladas.
Outro aspecto que talvez ajude a explicar o sucesso da ópera, é que ela é escrita para o público, apesar do modernismo aparentemente incompreensível do texto.
Thompson pressupõe que o seu público é educado e sofisticado. Facto ainda mais relevante considerando que ele não dissocia a obra de arte do seu público:
“It used to amuse me in Spain that it should take three children to play bullfight. One plays bull and another plays torero, while the third cries “ole!” Music is like that. It takes two people to make music properly, one man to write it, another to play it, and a third to criticize it. Anything else is just a rehearsal”.
Para Thompson, a música de Four Saints é uma homenagem a Kansas City.
A sua harmonia diatónica e cadências plagais são referências aos Hinos Protestantes, as passagens parlando referem-se ao canto da liturgia Anglo-Saxónica, o seu pot-pourri de mudanças de tempo e sonoridades remete para o universo sonoro do Midwest americano do séc. 19. Um coro Baptista com o seu harmonium (orgão de palheta), valsas, tangos, foxtrots, folk songs, música de rua, ragtime, marchas, tudo isto se ouve na ópera.
Por tudo isto, e por uma certa nostalgia do passado, fica no ar uma sensação de felicidade ao longo da peça.
De uma forma geral, as dissonâncias são evitadas, porque afectariam a energia do texto. A música é uma anotação do texto, não sugere emoções ou sentimentos que não existem no libretto. A música nunca põe em causa o ritmo nem a articulação do texto. Inversamente, sem o texto a música não tem o mesmo sentido.
Tal como nas suas canções, a clareza da prosódia nunca é posta em causa. Partilhava, com Samuel Barber num estilo muito diferente, a paixão da linguagem. O segredo da escrita de Four Saints reside na forma como o texto é musicado. Nas suas palavras:
“My hope in putting Gertrude Stein to music had been to break, crack open, and solve for all time anything still waiting to be solved, which was almost everything, about English musical declamation. My theory was that if a text is set correctly for the sound of it, the meaning will take care of itself. And the Stein texts, for prosodizing in this way, were manna. With meanings already abstracted, or absent, or so multiplied that choice among them was impossible, there was no temptation toward tonal illustration, say, of birdie babbling by brook or heavy heavy hangs my heart. You could make a setting for sound and syntax only, then add, if needed, an accompaniment equally functional. I had no sooner put to music after this recipe one short Stein text than I knew I had opened the door.”