Saturday, April 22, 2006

Wolfgang Theophilus Mozart e o Paraíso Perdido

Mozart adorava brincar com nomes. Alterava frequentemente o(s) seu(s) nome(s), assim como o de outras pessoas, na sua correspondência. Numa carta que ele enviou durante a sua viagem para Praga (onde viria a estrear Don Giovanni, em 1787) descreve uma brincadeira que envolvia os seus acompanhantes:

"(...) inventámos nomes para nós durante a viagem. Ei-los: eu sou Punkitititi. A minha mulher é Schable Pumfa. Hofer é Rozka-Pumpa. Stadler é Natchibinitschibi. O meu criado Joseph é Sagadaratà. O meu cão Gauckerl é Schamanuzky. Madame Quallenberg é Runzifunzi. Mlle Crux é Ramlo Schurimuri. Freistadtler é Gaulimauli".

As brincadeiras envolviam todos os seus nomes de baptismo (que era Joannes Chrysostomus Wolfgangus Theophilus Mozart), e consistiam em variações simples sobre o nome (De Mozartini, Mozartus, Mozarty), traduções para outras línguas (Wolfgango, Gottlieb, equivalente alemão de Theophilus), e variações mais complexas como Gnagflow Trazom, ou ainda anagramas como Romatz.

Mozart só começa a utilizar o famoso Amadeus (versão latinizada de Theophilus) a partir de 1774 numa carta dirigida à sua irmã (usava também Amadé). Maynard Solomon defende que a adopção universal de Amadeus no seu nome foi um processo póstumo provocado pelo sucesso da edição das Oeuvres Complèttes de Wolfgang Amadeus Mozart, da Breitkopf & Hartel em 1798-1806. Claro que o popular filme de Milos Forman contribuiu decisivamente para tal em tempos mais recentes.

Mas há uma forma do seu nome que aparece apenas numa fase da sua vida. Em toda a documentação oficial referente ao seu casamento (com Constanze Weber), em 1782, o nome inscrito é Wolfgang Adam Mozart. A escolha de Adam para substituir Theophilus (ou Amadeus) será engano ou uma alteração deliberada? Claro que Adam é um anagrama de Amad(é). Mas será a escolha de um nome com tantas implicações meramente acidental?

Adão (Adam) tem uma função muito específica no Jardim do Eden: é ele que dá nome aos seres vivos. Tal como Mozart, gosta de dar nomes às coisas. Vejamos Génesis 2-18:

"E o Senhor Deus disse: "Não é bom que o homem esteja só. Vou fazer-lhe uma auxiliar que lhe corresponda". Então o Senhor Deus formou da terra todos os animais selvagens e todas as aves do céu, e apresentou-os ao homem para ver como os chamaria; cada ser vivo teria o nome que o homem lhe desse. E o homem deu nome a todos os animais domésticos, a todas as aves do céu e a todos os animais selvagens, mas não encontrou uma auxiliar que lhe correspondesse."

Dar nome às coisas é conhecê-las. Para os antigos era frequente dar dois nomes às crianças, para que o verdadeiro permanecesse secreto para protecção de eventuais práticas de magia. Por outro lado, em rituais iniciáticos e casamentos é frequente a mudança de nome, o que aliás se mantém nos dias de hoje (veja-se o caso do casamento, ou a entronização do Papa). Freud leva a ideia mais longe. Para ele, dar nome a uma coisa é exercer domínio sobre ela.

Não é por acaso que só depois de dar nomes aos animais, ou seja, só depois de os conhecer, Adão constata que nenhum lhe corresponde. Depois da criação da Mulher, o texto diz: "Por isso deixará o homem o pai e a mãe e se unirá à sua mulher, e eles serão uma só carne" (Génesis 2-24). Também é conhecida a sequência: tentados pela serpente, provam o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal e são expulsos do paraíso.

O Homem, criado à imagem de Deus, reúne essas duas componentes, a divina e a terrena. Por outro lado há um aspecto que o distingue de todos os outros seres vivos (para além de ter sido o primeiro), é o único a quem Deus dá o sopro da vida (os animais, esses, assim que são criados vivem logo):

"Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra, soprou-lhe nas narinas o sopro da vida, e ele tornou-se um ser vivente." (Génesis 2-7)

Mozart tinha, desde cedo, plena consciência do dom que possuía, e frequentemente o atribuía à generosidade de Deus.

Por outro lado, Adão quer dizer Homem em hebreu, condição que, para ele, era ainda mais importante do que qualquer estatuto de nobreza concedido pelas convenções sociais. No início do segundo acto da Flauta Mágica, Sarastro é interpelado pelo Orador que lhe diz, acerca de Tamino: "Ele é um príncipe!". E Sarastro responde: "Mais, é um Homem!"

É difícil não estabelecer um paralelo com a situação de Mozart na altura do seu casamento. Depois de entrar em rota de colisão definitiva com o seu Pai Leopold, Mozart tinha abandonado pouco tempo antes a sua Salzburgo natal, contra a vontade dele. Já vivendo em Viena volta a ser atraido pela família Weber (anos antes tinha-se enamorado de Aloysia, uma das irmãs da futura mulher), em cuja casa se instala. Quando manifesta a vontade de casar com Constanze Leopold não pode estar mais em desacordo. De forma que este não dará o seu consentimento ao matrimónio, tão insistentemente pedido, até várias semanas após o mesmo. Mozart sabia que tinha enveredado por um caminho de independência do qual não podia regressar, e assim casou sem a autorização paternal.

Tal como Adão, preferiu a liberdade e o casamento em vez da segurança da protecção paternal. Tal como Adão, casou desafiando a autoridade do seu criador, consciente das consequências desse acto.

Concordo com Solomon quando sugere que a utilização do nome Adam não é acidental. Em várias ocasiões (incluindo o casamento) Mozart se recusou a apresentar o certificado de baptismo, quando para tal bastava fazer um requerimento ao registo da Catedral de Salzburgo. A sua recusa em fazê-lo poderá estar na base de nunca ter sido aceite no Tonkunstler-Societat (Sociedade dos Músicos) negando a possibilidade de a sua família beneficiar de uma pensão após a sua morte.

Dias após o casamento, Mozart regressaria ao seu nome usual, nunca mais usando Adam na sua assinatura. No entanto, na oração funerária maçónica em sua honra descrita por Karl Hensler em 1792 (Mozart tinha-se juntado à Maçonaria em Dezembro de 1784) foi designado 3 vezes como "A***". O número de asteriscos aponta provavelmente para um nome com 4 letras, e os iniciados tinham nomes secretos.

Seria Adam o seu?

Saturday, April 08, 2006

O Erro de Dom Afonso Henriques e A Prosódia na Música Portuguesa

Prosódia: "pronúncia regular das palavras em harmonia com a acentuação."
in Cândido de Figueiredo, Grande Dicionário da Língua Portuguesa.

Abundam na música portuguesa exemplos em que a letra é atropelada pela música dando origem a erros na métrica do texto. Habituá-mo-nos a cantar e a ouvir "pássaro feridú na asa" e "houve alegria e foguetees no ar" com toda a naturalidade. Claro que isso se deve à importação acrítica de modelos anglo-saxónicos de formas musicais aplicadas à nossa língua, sem ter em conta que o português tem características próprias, que deviam ser postas em evidência em vez de reprimidas.

A maior parte das palavras portuguesas têm uma acentuação na penúltima sílaba, e não na última como seria mais conveniente em música de influência anglo-saxónica. Para além disso, e ao contrário do português do Brasil, onde todas as sílabas têm valor, em Portugal quase que se omitem as sílabas fracas, num efeito parecido com aquilo a que os músicos de Jazz chamam "ghost-note". Isto levanta um desafio maior para quem escreve música vocal no nosso país.

Será que teremos que aceitar estes sucessivos atentados à prosódia nacional com resignação? A resposta tem de ser preocupante uma vez que somos talvez o único país em que duas das mais emblemáticas canções populares, o hino nacional e o "parabéns a você" têm, desse ponto de vista, erros claros: "ó pátria sentee-se a voz" no primeiro caso, e "para o meenino..." no segundo.

Gerações sucessivas de portugueses aprendem estas músicas como se fosse a coisa mais natural do mundo cantar com textos que não encaixam correctamente na música, ou em que somos forçados a dizer o texto incorrectamente sem que ninguém se importe com isso (podemos sempre invocar o facto de que o Alfredo Keil nem português era, triste sina esta!...).

A verdade é que as crianças continuam a aprender músicas com letras a martelo, e a questão é saber por quanto mais tempo.

Vem isto a propósito da nova colecção do jornal Expresso dedicada aos Reis de Portugal. Edição bonita, ilustrada por André Letria, uma leitura pedagógica e divertida para os mais novos. Excepto que, mais uma vez a música é muito mal tratada. Já não me refiro ao facto de a produção musical ser extremamente limitada, com tudo ou quase tudo ser feito em computador, em vez de ter músicos a tocar instrumentos reais. Como habitualmente, dá-se muita importância ao aspecto gráfico e visual, escolhe-se um nome mediático para fazer a narração, e no fim não há orçamento para uma produção musical decente. Não quero com isto dizer que a música não tenha alguma qualidade em termos de composição, mas a produção de facto é muito fraca.

Aliás a letra, isoladamente, também seria possível. O problema é quando se junta essa letra à música. E de facto seria difícil encontrar exemplo mais representativo de má prosódia: em quase todos os versos há um erro. Ou seja a pronúncia não está em harmonia com a acentuação. Neste momento talvez centenas ou mesmo milhares de crianças estejam a aprender aquelas músicas e letras perante o olhar comovido dos pais. Mas será que os pais as ouvem mesmo?

Neste primeiro volume dedicado a Dom Afonso Henriques somos de facto levados a pensar o que teria acontecido caso ele não tivesse feito frente à sua mãe. Ainda estão por estudar as consequências do ponto de vista psicanalítico de um país ter visto a sua origem num matricídio (num sentido figurado, claro), mas isto constitui de facto uma originalidade lusitana.

Talvez não tivéssemos expulsado do território uma civilização brilhante, com grandes poetas e músicos, talvez fôssemos galegos, castelhanos, espanhóis ou mesmo muçulmanos, mas, quem sabe, talvez tratássemos melhor a nossa música vocal.

Ou talvez não. Em todo o caso, é feio bater na mãe.

Friday, April 07, 2006

Pensamento Musical I - Introdução

(conferência na Universidade Lusíada, curso de Arquitectura, Fevereiro de 2003)

Falar de música para não-músicos é um desafio em que a essência das coisas tem de ser apurada, em vez do conforto da discussão de especificidades técnicas, que só a músicos interessam. Passamos tanto tempo a decifrar e analisar o detalhe e a complexidade da construção musical, que corremos o risco de nos esquecermos do que é afinal mais importante: os aspectos psicológicos, emocionais, artísticos, e até sociais que fazem com que a música esteja tão presente nas nossas vidas.

A música atravessa uma fase interessante. Nunca na história houve tanta divulgação e sucesso comercial como hoje. Nunca houve tantas pessoas a ouvir e a consumir música. Nunca houve tantos músicos, profissionais e amadores. E no entanto, nunca foi tão desvalorizada, nem a consciência da sua importância foi tão apagada como agora. Ouvimos música em restaurantes, cafés, e até bombas de gasolina, mas não existem discussões sérias em roda da música, da sua estética, da sua educação. Tornámo-nos indiferentes à música. Há quantos anos não se verifica um escândalo na estreia de uma peça? A música teve outra relevância noutros tempos, ocupando um lugar central no pensamento, na política, religião, e até na ciência. Música utilizada para formar guerreiros na antiguidade. Compositores da Idade Média queimados na fogueira por usarem dissonâncias que representavam o diabo nas suas peças. Bach quase que foi preso por causa de um improviso entusiasmado ao orgão num hino que confundiu a congregação que o cantava. Na estreia da Sagração da Primavera em Paris, Stravinsky teve que gritar dos bastidores para o palco os números de ensaio para os bailarinos, porque estes não conseguiam ouvir a orquestra devido aos distúrbios na plateia, que acabaram em pancadaria.

Hoje em dia, a música tornou-se num fenómeno rodeado de indiferença. E no entanto, a relação da humanidade com a música tem uma história gloriosa, em que o pensamento e a prática musicais andaram de mãos dadas desde o início.

O pensamento musical começa com o próprio pensamento. A cultura europeia sempre teve uma enorme atracção pela antiguidade clássica. Com a música não foi diferente. Ao longo da Idade Média, os autores gregos e romanos foram fonte de sabedoria e inspiração para os criadores nas várias áreas. Mas enquanto que na filosofia, literatura, arquitectura e belas artes os exemplos existiam e podiam ser estudados (através de estátuas e monumentos, por exemplo), na música não existia uma única peça ou fragmento sobrevivente. Para os que acreditam que a história da música começa verdadeiramente com a notação musical, essa história começa apenas no século VIII, em plena idade média.

Pensamento Musical II - Os Poderes Mágicos da Música

A relação da música com as outras artes remonta aos primórdios do pensamento humano. Apolo, um dos mais belos e gloriosos de todos os antigos deuses, era deus do sol, da medicina, da música, da poesia, e das belas artes. Com qualidades musicais reconhecidas, era o maestro do coro das 9 musas (era também conhecido como Musageta). As Musas reuniam-se no Monte Parnasso para debaterem questões de poesia, ciência e música. Cada uma tinha um pelouro diferente: Clio, musa da história; Euterpe, música; Thalia, poesia pastoral; Melpomene, tragédia; Terpsichore, dança; Erato, poesia lírica; Polyhymnia (retórica), que usava um ceptro para mostrar o poder irresistível da eloquência; Calíope, poesia heróica; e Urânia, musa da astronomia.

Apolo era ele próprio um ideal de beleza, representado como um extraordinário jovem imberbe, vestindo pouco mais que uma coroa de louros (em homenagem ao seu amor por Dafne, transformada em loureiro), e uma lira.

Apolo apaixonou-se por Calíope, e desse amor nasceu Orfeu, cujos talentos musicais são conhecidos. Com a sua lira conseguiu acalmar os demónios do Hades e quase trazer Eurídice de regresso do mundo dos mortos, não fosse a sua distracção fatal no último momento. Quando morre, despedaçado pelas bacantes por ter tocado música triste, os deuses colocam a sua lira no céu, onde se transforma em constelação.

Outro exemplo famoso é o de Amphion, filho de Júpiter e Antíope. Quando se torna rei de Tebas, quer fortificar a sua cidade construindo uma muralha à sua volta. O seu talento musical era de tal forma que, ao cantar, as pedras se deslocavam ao ritmo da voz, marchando para as suas posições na fortificação. Talvez seja a mais antiga referência escrita à importância do ritmo como elemento primordial da música.

Nada representa melhor o sublimar do processo de criação musical do que o episódio de Eco, que, devido ao seu amor não correspondido por Narciso, se enche de melancolia e tristeza, e desaparece gradualmente, num autêntico liebestod clássico, até ficar só a sua voz, a entoar um melodioso lamento, perdida em locais solitários para sempre.

Para os hebreus, a música também tinha poderes mágicos. David, músico, maestro e poeta brilhante (para além de ser provavelmente o primeiro produtor musical), cura as depressões de Saúl tocando a sua harpa (1 Samuel 16: 14-23). Também famoso é o episódio em que o som de 7 trompetes, misturado com os gritos dos israelitas, destrói as paredes de Jericó (Josué 6: 12-20), num dos primeiros confrontos registados entre música e arquitectura, em que a primeira leva nitidamente a melhor.

O Antigo Testamento refere igualmente o Lamento, ou Cântico do Arco, em que os guerreiros se treinam a atirar com o arco com a cadência do ritmo de um poema, um canto fúnebre de David sobre a morte de Saúl e seu filho Jónatas (2 Samuel 1: 17).

Desde os seus primórdios que a música esteve ligada à prática religiosa. Apolo aparece com uma lira, Dionísio (Baco) com um aulo (instrumento de palheta dupla, precursor do moderno oboé). Esses instrumentos eram tocados a solo ou a acompanhar a recitação de poemas épicos. A utilização de coros e secções instrumentais nas tragédias de Ésquilo, Sófocles e Eurípides deriva do culto a Dionísio com o referido aulo.

A partir do século VI a.c. desenvolvem-se festivais e competições de música vocal e instrumental com enorme sucesso. Cedo apareceram músicos profissionais, e a sua proliferação e virtuosismo crescente, levou a um maior grau de complexidade na música.

Aristóteles, no seu livro Política, alerta para o perigo de, na educação musical se dar demasiada importância aos aspectos técnicos, para evitar os excessos característicos dos profissionais, tão em voga. Excessos esses apreciados, segundo ele, por crianças, escravos, e até animais! Para Aristóteles, a educação deveria estimular o gosto e a fruição de melodias e ritmos nobres, e evitar a superficialidade da técnica pela técnica. Trata-se assim do primeiro exemplo de maneirismo musical. No fim do período clássico (entre 450 e 325 a.c.) dá-se uma reacção contra essas complexidades, levando a uma simplificação do estilo, à semelhança do que mais tarde se passaria na transição da Renascença para o Barroco, e do Barroco tardio para o Clássico do século XVIII. O início da era cristã assiste assim a uma prática musical menos elaborada.

Para termos uma ideia de como soava a música desta altura, temos 2 exemplos musicais: um fragmento de um coro de Orestes, de Eurípides (de ca. 200 a.c.), e o famoso Epitáfio de Seikilos, uma "canção de beber" (Skolion), inscrito numa pedra tumular (século II a.c.). A associação da música com os estímulos sensoriais (sobretudo com o vinho) é antiga, e inúmeros músicos e compositores se esforçaram, nalguns casos com grande êxito, a preservar essa tradição.

Se a música da Idade Média não foi muito influenciada pela música da antiguidade, o pensamento musical foi, e bastante. Os textos incidem sobre dois aspectos essenciais: a filosofia (a sua natureza), e a ciência da música. O fundador da teoria musical grega, Pitágoras (ca. 500 a.c.) não fazia distinções entre música e a ciência dos números, que, segundo ele, regulava todos os aspectos do universo espiritual e material. Da mesma forma, a organização dos sons, obedecendo a leis matemáticas, demonstra a harmonia do cosmos. Platão desenvolve estas e outras ideias nos diálogos Timeu e Républica. Dentro deste quadro de harmonia universal, é natural a associação da música com a astronomia. Ptolomeu (século II d.c.) acreditava que certas escalas, modos e notas estavam associados a certos planetas, e seus movimentos. Claro que esta ideia deriva do mito da "música das esferas" de Platão, aquela música silenciosa produzida pelo movimento dos planetas.

Boécio (século VI) conta o episódio em que Pitágoras descobre as leis físicas das consonâncias, ao passar perto de uma oficina de ferreiros. Ao ouvir os sons dos martelos a bater, aproxima-se e após alguma investigação descobre que os sons produzidos dependem do peso do martelo. Descobre igualmente que os ratios dos pesos de dois martelos correspondem às procuradas consonâncias naturais: 1/2 para a oitava, 2/3 para a quinta, 3/4 para a quarta, etc. Esta é uma das leis fundamentais da acústica, facilmente verificável com uma corda vibrante, e o comprimento de corda que vibra.

Para os gregos, música e poesia eram praticamente sinónimos. Para Platão, melos era uma combinação de discurso, ritmo e harmonia. O termo "poesia lírica" designa poesia para cantar ao som da lira. Aristóteles define poesia como tendo melodia, ritmo e linguagem, e refere que "existe outra arte que utiliza só a linguagem, em prosa ou em verso" (Poética, 1.1447a-b). Ou seja, não existia um termo para declamação de poesia sem música.

Para além disso, os pensadores gregos acreditavam que a música tinha qualidades morais, e podia influenciar o comportamento e o carácter dos seus praticantes e ouvintes. Aristóteles, com a sua teoria da imitação, em que a música imita, isto é, representa os estados de alma (doçura, raiva, coragem, etc.) defende que o sentimento imitado é transposto para o ouvinte. Música que imita violência gera sentimentos violentos em quem a ouve. Daí a necessidade de ouvir a música "correcta" para desenvolver o carácter.

Para Platão e Aristóteles, uma educação correcta deve contemplar, em doses equivalentes, música para disciplinar a mente e ginástica para disciplinar o corpo. Na Républica (ca. 380 a.c.), Platão defende que as duas vertentes devem estar equilibradas. Música a mais torna as pessoas neuróticas, e ginástica a mais violentas e ignorantes. Ora aì está um estudo por fazer nos relatórios sobre educação: o ratio de frequentadores de ginásios e praticantes de música. Outro: dentre as vítimas de neuroses, quantas estudam música? Mas Platão vai mais longe. Ele recomenda que os que forem treinados para governar devem evitar melodias que exprimam moleza e indolência. Em vez disso aconselha os modos Frígio e Dórico, que inspiram coragem e determinação. Acima de tudo, as convenções devem ser respeitadas. Uma coisa é certa: a falta de leis na arte e educação leva à anarquia na sociedade. Nas Leis, Platão refere a conhecida máxima "Deixem-me fazer as canções de uma nação, e não me importa quem faz as suas leis", trocadilho com a palavra nomos, que significa lei, mas também designa a estrutura melódica de uma peça.

Já Aristóteles admite que a música possa ser utilizada para diversão, prazer intelectual, para além da educação. Tudo isto dentro de certos limites. Por isso as primeiras constituições de Atenas e Sparta regulavam a utilização da música. Não mais que um precedente muitas vezes repetido ao longo da história, incluindo os nossos dias.

Para os romanos a música era igualmente importante. Cícero e Quintiliano deixaram bem claro que as pessoas cultas tinham obrigatoriamente de ter educação musical. De entre os numerosos imperadores que apoiavam a música, Nero destaca-se em notoriedade, por ter sérias aspirações nessa área, e por outras razões menos honrosas. Curiosamente, sabemos mais sobre música grega do que sobre música romana, da qual não sobreviveu nenhum fragmento. Este facto explica-se em parte pelo esforço deliberado de eliminar todos os vestígios da cultura pagã levado a cabo pelos primeiros séculos do domínio cristão.

Pensamento Musical III - Música Para Servir Deus

Em 312 d.c . o Imperador Constantino converte-se ao Cristianismo, dando início a mais de 10 séculos de domínio absoluto da cultura europeia, incluindo a prática musical. Com efeito, à medida que o Império se desmoronava, a Igreja consolidava o seu poder, tornando-se na principal força unificadora da Europa. Vários Papas tentaram uniformizar as numerosas liturgias locais, e a música não fugiu a essa normalização. O Papa Gregório II (715-31) teve particular importância nesse processo, ao reorganizar o repertório litúrgico, dando origem ao que mais tarde veio a ser conhecido por canto gregoriano.

Vários pensadores, conhecidos como os Padres da Igreja, deixaram testemunhos sobre a importância da música, influenciando a sua prática durante os séculos seguintes. São João Crisóstomo, São Basílio, Santo Ambrósio, Santo Agostinho e São Jerónimo acreditavam que o poder da música residia na capacidade de inspirar pensamentos divinos, para além de influenciar, para o bem e para o mal, a personalidade do ouvinte. Santo Ambrósio orgulha-se de usar a música para cativar fiéis. "Alguns dizem que já seduzi pessoas [para a fé] com as melodias dos meus hinos. Não o nego."

Mas mais importante era a necessidade de evitar o prazer da música só pelo prazer. A música devia servir apenas a religião, e nada mais. O próprio Santo Agostinho, num texto famoso, confessa-nos amargamente que cedeu ao pecado de se deixar comover pelo canto em vez do que era cantado:

"Quando recordo as lágrimas que derramei na psalmodia da Tua igreja, quando recuperei a minha fé, e como mesmo agora me deixo comover não pelo canto mas por aquilo que é cantado, quando é cantado por uma voz clara e uma melodia conveniente, então compreendo a grande utilidade deste costume. Por isso hesito entre prazer perigoso e plenitude provada, embora me sinta inclinado a aprovar a utilização do canto na igreja (apesar de não ter em relação a esse assunto uma opinião irredutível), para que as mentes mais fracas possam ser estimuladas para pensamentos devotos pelo deleite auditivo. Mas quando me comovo mais pelo canto do que pelo que é cantado, confesso ter pecado gravemente, e então lamento ter ouvido o canto. Vê o estado em que me encontro! Chora comigo, e chora por mim, tu que controlas os teus sentimentos mais íntimos da melhor forma. Para aqueles de vós que não reagem desta maneira, este problema não é vosso. Mas Tu, Senhor meu Deus, ouve, tem piedade de mim, e cura-me-Tu em cuja imagem me tornei um problema para mim próprio; e esta é a minha fraqueza."

Santo Agostinho, Confissões 10:33

No seu tratado De Musica (começado em 387 d.c.), defende as 3 principais características da música: claritas, integritas, veritas, qualidades que têm faltado a muitas peças ao longo dos tempos, incluindo o nosso.

A maior autoridade em música na Idade Média foi sem dúvida Boécio (ca. 480-524). No seu tratado De Institutione Musica, recupera ideias de teoria musical e filosofia da Grécia antiga. Para ele, a música divide-se em 3 tipos: musica mundana, ou cósmica, que regula as relações numéricas do movimento dos planetas e dos elementos; musica humana, que controla a união do corpo e da alma; e musica instrumentalis, ou música produzida por instrumentos (incluindo a voz humana), que deve reflectir a mesma ordem cósmica.

A imagem do Cosmos resultante das discussões de musica mundana e musica humana inluenciaram, entre outros, a estrutura do Paraíso na Divina Comédia de Dante. A doutrina da musica humana sobreviveu durante séculos, podemos dizer aliás até aos nossos dias: Boécio não deixaria de ter orgulho, mas também alguma estupefacção, ao ler a secção de astrologia nos jornais diários. Curiosamente, para Boécio, musica instrumentalis (a música tal como a conhecemos hoje) era a categoria menos importante das três. Música era, acima de tudo, a disciplina e compreensão dos fenómenos a ela associados, e não necessariamente a sua prática.

Tal como diz Donald Jay Grout, os cânticos da Igreja Romana são um dos maiores tesouros da civilização ocidental. Tal como a arquitectura românica, são monumentos à fé religiosa, e personificam o sentido comunitário e sensibilidade estética dessa época. Foram a fonte e inspiração da esmagadora maioria da música erudita na Europa até ao século XVI. Só recentemente foram abandonados, sobretudo a seguir ao Concílio Vaticano II (1962-65), em que o latim foi substituído pelo vernáculo local nos serviços da Igreja Católica.

A relação da música ocidental com a Igreja Cristã continuará nos séculos seguintes, atingindo o apogeu com um dos maiores génios de sempre: Johann Sebastian Bach. Bach escrevia no final das suas partituras as 3 letras SDG (Solo Deo Gloria). E no início: JJ (Jesu Juva).

Pensamento Musical IV - A Música Como Abstracção (1)

Polifonia VS. Harmonia

Um frade do século XI, Guido de Arezzo, teve uma importância extraordinária no desenvolvimento da música quando, para ajudar os seus alunos de canto, decide designar cada nota musical por uma sílaba: ut, re, mi, fa, sol, la. Estas sílabas derivam de um texto para o qual ele compôs música para ilustrar o padrão de tons e meios tons que caracterizam a moderna escala maior.

Ut queant laxis
resonare fibris
Mira gestorum
famuli tuorum,
Solve polluti
Labii reatum, Sancte Joannes.

[Para que os teus servos possam livremente cantar as maravilhas dos teus feitos, limpa as nódoas de culpa dos seus sujos lábios, oh São João.]

Tal como Guido, vejo a necessidade desta oração antes das aulas de solfejo, apesar de alguns alunos insistirem em pôr à prova a sua utilidade.

Mas as contribuições para a pedagogia de Guido não se ficaram por aqui. Para aprenderem melhor os intervalos que as várias notas produzem, os seus seguidores utilizavam a "mão de Guido": o professor aponta com o indicador da mão direita os nós da mão esquerda aberta, onde cada nó representa uma das 20 notas do sistema musical de Guido, baseado em hexacordes. Uma nota que não pertencesse ao sistema era considerada "fora da mão".

Mas o século XI vê surgir, para além das inovações de Guido, dois fenómenos de primordial importância no desenvolvimento da Música: notação musical e polifonia. Polifonia designa música em que várias vozes se combinam não em uníssono, mas em partes diferentes. Após as primeiras tentativas improvisadas, foi possível sistematizar a maior complexidade resultante através da notação musical recentemente desenvolvida, permitindo a repetição e aperfeiçoamento das execuções. Este desenvolvimento da polifonia tem um suporte histórico, não sem alguma ironia, pois a mesma Igreja Cristã onde ele tem lugar se divide em duas, quando o Patriarca de Constantinopla é excomungado pelo Papa em 1054. Uma das primeiras referências à prática da polifonia, que Guido conhecia bem, aparece num tratado anónimo do século IX conhecido por Musica Enchiriadis (Manual de Música), com a descrição do conceito de diafonia (2 vozes), ou organum.

Com a polifonia a música ocidental conhece um fenónemo único, e que estará na base de algumas das maiores realizações artísticas da humanidade. O seu desenvolvimento é considerado por alguns como a fase mais decisiva da história da música ocidental.

A partir desta altura, a música ocidental vai alternar momentos em que o estilo dominante é muito marcado pelo contraponto, enquanto que noutros, será a harmonia a dominar. Há essencialmente 3 momentos na história em que o contraponto chega a níveis de complexidade e sofisticação muito elevados, tendo sido rejeitados pelas gerações que se lhes seguiram: final do Renascimento com Palestrina; final do Barroco com Johann Sebastian Bach; e início do século XX com Arnold Schoenberg. A seguir a estas fases, a música homofónica (baseada em harmonia) destronou o contraponto e a polifonia, que por sua vez se desenvolveram novamente num contexto diferente.

Mas para além da questão do estilo musical, a discussão em roda da polifonia assenta em ideias mais profundas, a saber, se a polifonia deriva, ou não, das leis naturais, tal como, supostamente, a harmonia, ou se é apenas uma construção intelectual para deleite da mente.

Críticas à polifonia existiram desde cedo. Bernardo Cirillo, um padre do século XVI, queixava-se em 1549, do rumo que a música tinha tomado:

"Sabes quanto a música era apreciada pelos antigos como a mais nobre das artes. Com ela produziam grandes efeitos que hoje não conseguimos igualar, seja com retórica ou oratória, controlando as afecções [emoções] da alma [...]. Vejo e oiço a música de hoje, que é suposto ter chegado a níveis de refinamento e perfeição sem precedentes. No entanto não vejo vestígios de nenhum dos modos antigos...Kyrie Eleison significa "Senhor tende piedade de nós". Um músico antigo teria expressado o seu pedido de perdão no modo mixolídio, o que teria comovido qualquer disposição mais emperdenida, senão às lágrimas, pelo menos até uma afecção piedosa [...]. Hoje tudo é cantado em promiscuidade e de forma incerta [...]. Gostaria que a música consistisse de certas harmonias e ritmos aptos a inspirar os nossos sentimentos para a religião e piedade, de acordo com o significado das palavras. Hoje os esforços vão no sentido de fazer uma peça em fuga estricta, de forma que quando um diz "Sanctus" outro pronuncia "Sabath", enquanto que um terceiro canta "Gloria Tua", com certos efeitos que mais parecem gatos em Janeiro [...]."

Bernardino Cirillo, carta de 1549 a Ugolino Gualteruzzi
Lettere Volgari di Diversi Nobilissimi Huomini, ed. Aldo Manuzio, Vol. 3 (Veneza, 1564)

Entre 1545 e 1563, a Igreja Romana reuniu-se intermitentemente em Trento, no norte de Itália, para discutir a Reforma, e sobretudo para tentar corrigir alguns dos excessos que estiveram na sua base, ou seja as 95 teses de Martim Lutero em Wittenberg. Com este Concílio organizou-se a Contra-Reforma, onde também se discutiu, como não podia deixar de ser, o papel da música na Igreja. Mais uma vez a polifonia era criticada: tornava-se impossível compreender as palavras, que eram, afinal, mais importantes. Havia quem defendesse que a música deveria ser banida da Igreja. No entanto, a deliberação final do Concílio sobre esse assunto é muito geral:

"Todas as coisas devem ser ordenadas de forma que as Missas, sejam elas celebradas com ou sem música, possam chegar tranquilamente aos ouvidos e corações de quem as ouve [...]. O objectivo de cantar nos modos musicais não é o prazer vazio do ouvido, mas sim que as palavras sejam claramente compreendidas por todos, e, dessa forma os corações dos ouvintes sejam atraídos para o desejo de harmonias celestiais, na contemplação das alegrias dos abençoados [...]. Deverá ser banida da Igreja toda a música que contenha coisas lascivas e impuras."

Concílio de Trento, Canon da utilização da música a ser utilizada na Missa.

Diz uma lenda do final do século XVI que Palestrina salvou a polifonia da condenação do Concílio compondo uma Missa a 6 vozes extremamente devota em espírito, e clara em relação ao texto, tendo dedicado a obra ao Papa Marcelo, durante o Concílio.

Jean-Philippe Rameau, o principal músico e teórico francês do século XVIII, publica em 1722 o seu famoso Traité de l' Harmonie. Esta obra deriva os princípios básicos da harmonia das leis da acústica, em que o acorde, não a melodia, é o elemento primordial da música. Na realidade, para Rameau, toda a melodia é baseada em harmonia. Este tratado foi extremamente influente nos 2 séculos seguintes, e, de facto, o início do período clássico vê as suas ideias postas em prática de uma forma generalizada, adiando uma nova era marcada essencialmente pelo contraponto para 2 séculos mais tarde.

Pensamento Musical V - A Música Como Abstracção (2)

A Música Nos Pensadores Pós-Renascimento

A música volta a ocupar um lugar central nas discussões dos pensadores pós-renascimento. Recuperam-se ideias antigas, e, uma vez mais se investigam as várias facetas da prática musical em função de aspectos de religião, filosofia, e ciências da natureza.

Robert Fludd (1574-1637), alquimista inglês do século XVII, com a sua "música das esferas": todo o universo é um instrumento musical cromático; o próprio Deus é músico. Os astros estão dispostos segundo as regras da harmonia musical, as distâncias que os separam respeitam as proporções dos intervalos.

Ilustração: música das esferas. A mão é a da Divindade, que acciona o gigantesco instrumento cósmico de música, onde todas as proporções, todos os intervalos são representados.

Athanasius Kircher, jesuíta alemão do século XVII, publica um tratado, Musurgia Universalis, que se torna no principal tratado de música e acústica do século XVII. Fortemente inspirado por Pitágoras, retoma também ideias do nosso conhecido Guido de Arezzo.

Ilustração: mão musical.

Ilustração: transcrições de canto de pássaros. De notar que o papagaio faz a saudação na língua em que a aprendeu, o grego (khaire). Este processo foi retomado no século XX pelo grande compositor francês Olivier Messian, nomeadamente na sua peça Réveil des Oiseaux, de 1953.

Ilustração: Sistemas econométricos. Construção de ecos polifónicos e heterofónicos. Estes sistemas pertencem ao que Kircher chama magia fonocâmptica. Mostram que nem só a harmonia deriva da ordem natural.

Propriedades terapêuticas da música: mordidela de tarântula

Ilustração: homens afectados por mordidela de tarântula, que dançam frenéticamente ao som da tarantela, para se curarem do veneno.

Ilustração: cura pela música da mordidela de tarântula. Naquele que deve ser o primeiro tratado de terapia musical, Kircher descreve o curioso fenómeno do tarantismo, que afecta os habitantes da Apúlia, no sul de Itália, e que os obriga a dançar frenéticamente sem respeitar convenções sociais. Esta doença era imputada à mordidela de tarântula, e a única maneira de se curarem era interpretar repetidamente a melodia (tarantela), até à exaustão. Na realidade a doença parece ter sido causada por uma psicose periódica como reacção a normas sociais demasiado restritivas. Kircher explica que a cura se deve à transpiração do veneno, e que o tipo de música deve estar de acordo com a constituição da vítima. Na ilustração vê-se a melodia que serve de antídoto, a região da Apúlia e exemplares autênticos da tarântula dessa região.

Pensamento Musical VI - A Música Como Abstracção (3)

Retórica e Prolongamento

Com o humanismo do século XVI, gerado pelo Renascimento, o pensamento recuperou algumas ideias da Antiguidade Clássica, sobretudo no que toca à gramática, retórica, poesia, história e filosofia moral. A relação da música com a prosa é, no entanto, mais antiga. Já John "Cotton", teórico do século XII, fazia esse paralelo. A articulação das frases da melodia corresponde às do texto.

Ilustração: Bach

Com Bach, a relação entre música e retórica conhece um significado muito profundo. Em 1723, o grande compositor escreve um conjunto de 15 peças de carácter pedagógico intituladas "invenções". O termo "invenção" pode-nos parecer um pouco confuso se não soubermos que não designa um género musical (viria a designar mais tarde), mas sim um termo que pertence à retórica, usado coloquialmente para designar a ideia temática essencial de uma peça musical. É importante compreender que este sentido de "invenção" (inventio em latim, ou heuresis em grego) tem de ser entendido numa altura em que a retórica, tal como a etimologia e filosofia natural, era uma ciência muito importante. Ou seja estamos ainda antes do tempo em que a teoria crítica dos iluminados do fim do século XVIII abandonam a retórica a favor da estética, substituindo a arte da invenção pelo poder da criatividade. Enquanto que a meio do século a corrente dominate defende que a base do génio é a invenção, já Kant pensa em 1790 (Critiques) que "a imaginação criativa é a verdadeira origem do génio e a base da originalidade".

Invenção designa portanto o tema de uma oração, mas também o mecanismo para descobrir boas ideias. Há numerosas provas de que Bach pensava, tal como os seus contemporâneos, que "invenção" era um conceito fundamental para o treino e actividade de um compositor. Como método, a invenção pertence às chamadas "divisões" da retórica tal como descritas por Cícero na sua obra De Inventione, amplamente conhecida na Alemanha do século XVIII, para qualquer pessoa com uma educação clássica mínima. Para Cícero, há 5 fases na criação de uma oração:

1. invenção (inventio)
2. disposição (dispositio)
3. estilo (elocutio)
4. memória (memoria)
5. apresentação (pronunciatio, ou actio).

Os teóricos da música do século XVIII simplificaram estas ideias, mantendo a analogia óbvia com a prática musical. Christoph Bernhard, aluno de Heinrich Schütz, reduz as 5 fases a 3:

1. descoberta (inventio)
2. amplificação (elaboratio)
3. realização (executio).

Já Mattheson tenta conciliar as duas interpretações, reforçando a ideia que música e retórica são análogas. Bach estava bem ao corrente destas ideias quando compõe as suas invenções. A primeira, em dó maior respeita as divisões com admirável clareza.

Uma análise mais detalhada excede o âmbito do nosso encontro de hoje, mas da retórica resulta um dos aspectos mais importantes do processo de criação musical: o conceito de prolongamento musical. Este conceito só estudado de uma forma sistemática no século XX pelo teórico austríaco Heinrich Schenker, revolucionando a forma como se estuda música dita tonal, através da análise e audição estrutural.

Pensamento Musical VII - O Regresso de Apolo e Dionísio: Coração e Cérebro Na Música

Arnold Schoenberg (1874-1951), muito criticado, ainda hoje, por ser demasiado intelectual, defende no seu ensaio "Apollonian Evaluation of a Dionysian Epoch" que épocas em que a experimentação enriquece o vocabulário da expressão musical alternam com outras em que as experiências anteriores são ignoradas, ou transformadas em regras rígidas que são por sua vez seguidas pelas gerações futuras. Nietzsche estabelece um contraste entre a mente apolónica, que procura proporção, moderação, ordem e harmonia, e o seu oposto, a mente dionisíaca, que é dinâmica, apaixonada, intoxicada, expansiva, creativa e, nalguns casos destrutiva. Segundo Schoenberg, para dar um exemplo, o período clássico é essencialmente apolónico, enquanto que o período seguinte, o romântico, é sobretudo dionisíaco.

O século XX é a este respeito, mais complexo. No furor do modernismo, alterna-se entre dois extremos, o impulsivo e o intelectual, em ambos os casos descontextualizados, e se um compositor tenta manter os dois elementos é imediatamente acusado de conservadorismo, vivendo expatriado numa "terra de ninguém" porque se torna mais difícil de catalogar. Era e é o caso de Schoenberg.

No seu famoso ensaio "Heart and Brain in Music", Schoenberg diz-nos que

Balzac in his philosophical story Seraphita describes one of his characters as follows: "Wilfred was a man thirty five years of age. Though Though strongly built, his proportions did not lack harmony. He was of medium height as is the case with almost all men who tower above the rest. His chest and his shoulders were broad and his neck was short, like that of men whose heart must be within the domain of the head."
No doubt all those who supposedly create cerebrally - philosophers, scientists, mathematicians, constructors, inventors, theorists, architects - keep their emotions under control and preserve the coolness of their heads even though imagination will often inspire them. But it is not generally agreed that poets, artists, musicians, actors, and singers should admit the influence of a brain upon their emotions.

Tal como coração e cérebro, harmonia e contraponto são compatíveis. São mais do que isso, na realidade. Para Heinrich Schenker, o maior teórico do século XX, a harmonia é gerada pelo contraponto. Schoenberg, apesar de não levar Schenker muito a sério (este não gosta da sua música), vai ao encontro da mesma ideia. Uma das suas maiores contribuições para a música é a chamada "música de 12 tons", uma teoria que pretende sistematizar a composição em que as dissonâncias são totalmente emancipadas, para usar um termo seu. Este sistema representa o apogeu da arte do contraponto, num certo sentido ainda mais que o de Bach, por corresponder ao contraponto no seu estado mais puro.

Mas na realidade, a música de 12 tons, considerada muito intelectual, é acima de tudo inspirada no misticismo do mesmo Seraphita de Balzac, e nas descrições do céu de Swendenborg, onde não há Norte nem Sul, nem Este nem Oeste, onde tudo pode ser percorrido em todas as direcções. Para alguns custa a crer que Verklarte Nacht tenha sido escrita pelo compositor das Variações Para Orquestra.

Ao comentário frequente de "porque é que Schoenberg não continuou a compôr no estilo de Verklarte Nacht?", ele respondia que continou a fazê-lo, só que melhor. E, na verdade, o romântico Verklarte Nacht está, também ele, repleto de processos intelectuais que seriam o orgulho de qualquer contrapontista: leitmotives com respectivas inversões, aumentações, diminuições, etc.

Claro que a utilização de processos intelectuais de crescente complexidade é um fenómeno antigo. Nos finais do século XIV, no apogeu da Ars Nova, Cordier parodiava já alguns extremos intelectuais que marcaram essa época, tanto na música como na sua na apresentação gráfica.

Ilustração: utilização de 3 níveis de hemíola, um recurso rítmico que consiste em sobrepôr 3 batimentos no espaço de 2.

Zarlino, um teórico extremamente importante do século XVI, constatava com alegria um renascer da música a seguir a um período de relativo declínio, atribuindo esse renascer a Adrian Willaert, comparando-o a Pitágoras: "[...] um dos mais raros intelectos que alguma vez praticaram música", e ainda: "[Willaert] demonstrou a ordem racional da composição de qualquer peça de forma elegante", sendo as suas composições claros modelos disso mesmo.

Em relação a isto, tal como noutros casos, vale a pena ouvir a opinião das crianças, tantas vezes sábias em assuntos profundos: numa recolha de poemas de crianças de uma escola de Lisboa, a Beatriz, do 3º ano, diz:

É a música
É a canção
É uma lenga-lenga
Que tem lá dentro
Uma tabuada.

A Beatriz acredita, tal como os grandes mestres da polifonia, que a música encerra a sua própria matemática.
Mas essa matemática não impede o coração de se manifestar.

Na mesma recolha, a Matilde, de 5 anos, diz-nos:

Quando o nosso coração
Está a bater
É sinal
Que está a falar connosco.

Por um lado o coração, mas por outro, a comunicação, domínio por excelência do racional.

De facto, penso que é difícil separar coração e cérebro, apenas se manifestam alternadamente, com primazia ora para um, ora para outro.

Wednesday, April 05, 2006

Pensamento Musical VIII - Reflexão Final

Os nossos governos obedecem a padrões mais ou menos rígidos, em que a primazia vai para as questões da economia, finanças, administração, educação (ou nalguns casos "educacionismo"). Mas a verdade é que os sistemas actuais são incapazes de resolver muitos problemas que eles próprios criaram. Talvez esteja na altura de, uma vez mais na história, olharmos para os antigos e colher os seus ensinamentos. Quem sabe se com a criação de um Ministério da Música, uma Secretaria de Estado da Retórica, uma Alta Autoridade para a Poesia Lírica se encontrassem algumas soluções. Uma coisa é certa: os poderes públicos devem prestar mais atenção às questões da criatividade, também ela um direito democrático.

David Bohm defende que a falta de criatividade gera destrutividade. Nalguns casos, assumida sem complexos. Numa audição de entrada para uma escola de música há uns tempos atrás tive este curioso diálogo com um jovem aluno:

- de que tipo de música gostas?
- metálico.
- metálico, como?
(sem hesitar) - destrutivo.

Este jovem adolescente foi admitido, e tornou-se num excelente aluno e mais tarde, excelente profissional, que recorda com nostalgia simpática os seus tempos de "metálico". Há certas fases que convém atravessar na idade certa.

Esperemos que a fase que a música actual atravessa seja igualmente uma crise de adolescência, e possamos vir a ter no futuro mais criatividade e menos destrutividade nas nossas vidas. E que a música volte um dia a exercer os seus poderes mágicos em pleno.


Bibliografia

- Grout, Donald Jay. A History of Western Music. 5th ed. W. W. Norton & Company: 1996.
- Schoenberg, Arnold. Structural Functions of Harmony. Rev. ed. W. W. Norton & Company: 1969.
- ________________. Style and Idea. Selected Writings of Arnold Schoenberg. Leonard Stein, ed. University of California Press: 1975.
- Hutin, Serge. Robert Fludd (1574-1637). Alchimiste et Philosophe Rosicrucien. Éditions Omnium Littéraire: 1971.
- Gómez de Liaño, Ignacio. Athanasius Kircher. Itinerario del Éxtasis o Las Imágenes de un Saber Universal. Ediciones Siruela: 1990.
- Mann, Alfred. The Study of the Fugue. Dover Publications, New York: 1987.
- Bohm, David. Ciência, Ordem, Criatividade. Trad. Jorge Branco. Gradiva: 1989.
- Jeppesen, Knud. Couterpoint. The Polyphonic Vocal Style of the Sixteenth Century. Dover Publications, New York: 1992.
- Dreyfus, Laurence. Bach and the Patterns of Invention. Harvard University Press: 1996.
- Guerber, H. A. The Myths of Greece and Rome. Dover Publications, New York: 1993.
- Young, G. Douglas, ed. Compact Bible Dictionary. Tyndale House Publishers: 1984.

Reflexões Sobre o Lápis

(texto escrito para o catálogo da exposição "A Riscar Uma Ideia")

“A côté d’un crayon oublié”
-Jacques Prévert


Com o aparecimento e generalização da utilização do computador, o lápis parece ter perdido, pelo menos em parte, a sua utilidade. Mesmo os mais resistentes ao desenvolvimento da tecnologia, nos quais eu me incluo, lentamente se renderam à sua eficácia. Comentários do tipo “computadores não é comigo” deram lugar a “só uso porque tem de ser”, para acabar com “como é que eu perdia tempo a escrever rascunhos e cartas à mão?!”.

No caso da música, o processo foi idêntico. Com o desenvolvimento de software especializado em notação musical, como compositor passei a ter a possibilidade de entregar as minhas partituras com apresentação profissional, sem terem de passar pelas mãos de copistas, revisores, editores, e pelos custos que isso implica.

E, no entanto, continuo a depender irracionalmente do ancestral lápis. Pelas mais diversas razões.

A utilização do computador põe, na realidade, alguns problemas. Nem de propósito: a primeira versão deste texto encontra-se, no momento em que escrevo, em parte virtual incerta devido a um crash do meu computador. Felizmente tinha o rascunho manuscrito.

Por outro lado, com o computador não se guardam rascunhos e primeiras ideias. Na composição, muitas vezes o produto final corresponde a uma sedimentação e reciclagem de ideias prévias. Só o bloco de notas nos permite estar em permanente contacto com elas.

A música é porventura a mais abstracta das formas de arte, e como tal precisa de um suporte físico. Assim como o esculptor trabalha directamente a pedra, o compositor fica mais “próximo” das notas que o lápis vai deixando ansiosamente no papel. A representação de uma peça musical não corresponde à peça em si, ao contrário da pintura, por exemplo, em que a tela é a própria obra. A notação musical (outra arte em si) é meramente um suporte material de um universo totalmente abstracto.

A nossa relação com o lápis vem de longe. Com efeito, a primeira forma de expressão artística é feita normalmente, ainda em criança, com o lápis. E sempre me maravilhou a sua característica, quase mágica, de se poder apagar, ao contrário de uma vulgar caneta.

O lápis cumpre uma missão importante, mas ingrata. A utilização do lápis corresponde à fase do trabalho que nunca se mostra a outros. Como músico executante e compositor, sinto-me particularmente exposto ao público, e fico pouco à vontade quando assistem a ensaios, ou espreitam os meus rascunhos. Porque estes esquissos são instantâneos do meu processo criativo. Concordo com o grande compositor Edgar Varèse quando diz: “quando finalmente apresento uma peça, é um produto acabado. As minhas experiências vão para o lixo”.

Injustamente, o lápis não deixa memória, para além do registo para o qual foi utilizado. Porque o lápis materializa ideias, e ao fazê-lo, desmaterializa-se, desaparece.

Tal como o carpinteiro, quando tenho uma ideia coloco o lápis atrás da orelha, para que a ideia não me fuja enquanto a confirmo ao piano. Tal como o fumador com o cigarro, brinco com o lápis para me concentrar. Em momentos de maior entusiasmo, o lápis transforma-se em batuta de maestro e ajuda-me a dirigir uma orquestra imaginária e ouvir os sons que estou a criar.

Na realidade, nunca me tinha apercebido da sua verdadeira importância até me ter sido pedido este texto. Ao votar o lápis ao esquecimento, estamos a abandonar uma parte do universo das nossas ideias.

E um lápis esquecido tem sempre mais uma história para contar.

Outubro de 2001

Friday, March 24, 2006

Miles Davis: The Complete Concert: My Funny Valentine + Four And More - Columbia 1964

(escrito para a revista Linha, do jornal Expresso)

Há 40 anos atrás um concerto de Miles Davis no Lincoln Center foi gravado e deu origem a dois discos, My Funny Valentine, e Four And More (que se encontram reeditados num CD duplo). É sem dúvida um dos mais extraordinários registos da história do Jazz.
Em 1964 Miles encontrava-se numa fase de transição. Depois de uma remodelação profunda do seu grupo em 1963, passou a contar com o pianista Herbie Hancock, Ron Carter no contrabaixo e Tony Williams, com apenas 17 anos, na bateria. No saxofone tenor George Coleman tinha a difícil tarefa de substituir John Coltrane, cuja influência no grupo ainda se fazia sentir, apesar de o ter abandonado em 1960.
Impressiona o nível de comunicação entre os músicos: a sua imaginação, capacidade de abstração numa vertente harmónica cada vez mais complexa, a sua invenção e profundidade.
É interessante assistir neste concerto à tensão criada por dois universos diferentes: uma linguagem que dava os primeiros passos rumo ao futuro, ou seja, à desconstrução da gramática musical tal como ela era conhecida até então, e outra, mais conservadora, se bem que a um nível de criatividade muito alto. De um lado Miles e a sua jovem secção rítmica, do outro George Coleman. Isto levou, escassos meses mais tarde, à sua substituição por um músico que iria com esse grupo revolucionar a música por completo pouco tempo depois: Wayne Shorter.
Parte do segredo da magia de Miles Davis reside no seu som. Miles disse que descobrira esse som graças ao seu velho professor de East St. Louis, que o aconselhou a não usar vibrato: "you'll be shaking soon enough in life", dizia. A verdade é que com ou sem vibrato Miles continua a maravilhar-nos.

Sunday, March 05, 2006

A Formação no Panorama Musical em Portugal - Algumas Reflexões

(texto escrito para o I Congresso dos Músicos)

Muito se tem discutido sobre a situação da música em Portugal, e concretamente da música portuguesa nas suas mais variadas vertentes. Apoios do Estado, mecenatos privados, quotas nas rádios, para citar alguns dos tópicos mais recorrentes. Todas essas questões são pertinentes, e relevantes no seu âmbito. Mas é preciso acrescentar um aspecto crucial para a compreensão do problema. A consolidação da produção musical no nosso país passa também, e talvez sobretudo, pela melhoria da qualidade dessa prática musical. E não pode haver melhoria sem dar uma atenção muito especial aos aspectos da formação e divulgação musicais no nosso país.

Quando falamos de formação, estamos a falar de pôr em contacto qualquer cidadão de qualquer idade e meio social com os vários níveis de actividade musical, desde o mais elementar ao mais especializado. Essa actividade deveria constituir uma pirâmide, para utilizar uma ilustração visual, em cuja base se incluiriam o ensino nas escolas, acções de divulgação, cursos para amadores, orquestras de comunidade, concertos em organizações locais, para além do ensino especializado de nível superior, com a correspondente actividade pré-profissional e profissional, que constituiria o topo da pirâmide. Temos portanto que separar ensino especializado do ensino não-especializado. Em ambos os casos muito se tem feito, mas muito está ainda por fazer.

1. Ensino não-especializado

O grande desafio consiste em encontrar formas de envolver a música na vida do dia-a-dia das pessoas (não me refiro a música de fundo nas bombas de gasolina...). Tal só será possível mudando um pouco alguns dos nossos hábitos, passando as famílias portuguesas a “consumir” um pouco mais de música de qualidade, seja de que estilo fôr, em casa. Quando falo de música de qualidade, não me refiro de forma alguma a uma visão elitista, mas sim a um tipo de música que exceda a função de pano de fundo, ou seja, música à qual se dá um pouco mais de atenção. Para demonstrar a dificuldade de tal objectivo, basta referir que esse tipo de música não está em geral facilmente disponível: para dar um exemplo, refira-se a quase total ausência de música de qualidade na televisão, já para não falar de programas de cariz pedagógico (o tão badalado serviço público de televisão…).

No capítulo da iniciação musical a nível nacional, é justo reconhecer o papel importante das filarmónicas pelo país fora (para além de uma função social fundamental). Graças a elas, milhares de crianças e jovens têm acesso à prática musical, de outra forma só ao alcance daqueles que têm acesso aos relativamente poucos conservatórios do país. Mas por outro lado as filarmónicas deveriam ser mais responsabilizadas pelos apoios que recebem. Abrilhantar as festas da freguesia não chega. Maestros melhor preparados, repertórios mais estimulantes e maior exigência de qualidade deveriam ser o apanágio dessas organizações. Com as devidas excepções, que as há, felizmente, e onde tal já acontece, estas melhorias teriam um impacto enorme na “formação musical” em Portugal. As filarmónicas poderiam também colaborar com as escolas de ensino básico, facultando a utilização de alguns instrumentos, afinal a grande dificuldade destas em promover ensino musical prático.

O passo verdadeiramente decisivo no ensino da música em Portugal deverá no entanto ser dado justamente nas escolas de ensino básico. Enquanto tal não acontecer, todos os esforços estarão limitados por uma questão verdadeiramente estrutural: o facto de a música estar reservada a um grupo extremamente minoritário da população. A educação, como direito democrático que é, consiste em tornar acessível às pessoas as várias vertentes do saber e das actividades da sociedade. Não se trata de forçar toda a gente a estudar música. Não podemos é aceitar que jovens deixem de se dedicar à música (como a qualquer outra área) por não terem tido acesso a ela.

Só escolas dotadas de instrumentos e aulas práticas de música (pequenos grupos, orquestras, grupos corais), cujo objectivo será essencialmente estimular o gosto pela música, e não afastar alunos em nome dum qualquer conceito pedagógico de suposto rigor e academismo, farão verdadeiramente a diferença. Não é por acaso que essa é precisamente a situação nos países com tradição musical mais forte: Alemanha, Reino Unido, Estados Unidos, França. Claro que levar a cabo este projecto de uma forma integrada tem custos. Mas passa também por vontade política, que tem faltado: foi recentemente elaborado para o Ministério da Educação um programa para uma disciplina opcional do 12º ano chamada “Cultura Musical” que ainda espera a sua aplicação. Sempre seria um primeiro passo.

Outro aspecto importante na divulgação é o desenvolvimento do circuito dos “pequenos” concertos, actualmente muito reduzido, não permitindo prática profissional aos jovens músicos. Este circuito poderia incluir clubes recreativos das freguesias, bibliotecas, escolas, igrejas, museus, etc. onde, por preços muito reduzidos as comunidades teriam acesso a vários tipos de música, enquanto que os jovens músicos veriam a oportunidade de ganhar prática de concertos, uma vez que a prática nas escolas não é suficiente. A aposta nos jovens músicos é também, em grande parte, a aposta na formação de públicos.

2. Ensino especializado

O investimento no ensino da música em Portugal passa obrigatoriamente por dar melhores condições às escolas de música e conservatórios do país. Temos o exemplo do Conservatório Nacional de Lisboa, que não dispõe de uma sala para ensaiar uma orquestra completa, para não referir o adiamento constante de obras urgentes. Raras são as escolas e conservatórios que dispõem de salas individuais de estudo para prática instrumental. Ou seja, as escolas de música devem ter características próprias, e nem sempre o aproveitamento de espaços que foram concebidos para outros fins (caso da larguíssima maioria das escolas de música em Portugal) resulta satisfatoriamente.

Outro problema comum a muitos cursos no nosso país, incluindo os cursos superiores mais recentes nesta área é a ausência de bibliotecas e mediatecas especializadas. Como pode haver investigação académica séria sem esses meios fundamentais? Portugal deve ser dos países do mundo ocidental desenvolvido onde se tiram mais fotocópias no ensino superior. Fotocopia-se porque é quase impossível comprar, ou é quase impossível comprar porque se fotocopia tudo? Boas bibliotecas ajudariam a ultrapassar este problema. É essencial formar mais investigadores, e em áreas não somente restritas à música erudita. Temos alguns investigadores de renome em algumas universidades, mas quase sempre com obra publicada sobre música erudita portuguesa. Essa área de estudo é fundamental, mas não nos podemos limitar a ela. É também necessária mais actividade académica, com mais visibilidade. Mais estudos publicados, maior regularidade, mais publicações especializadas, mais livros em português.

Tal como noutras formas de arte (assim como muitas outras profissões), na música é crucial o contacto com outras experiências, porventura em centros de grande cultura musical. Desta forma, deveria ser parte integrante do desenvolvimento do jovem músico profissional o estudar e adquirir experiência noutros países. A dificuldade neste caso passa pela enorme carência de bolsas para estudo no estrangeiro, e, quando essas existem, são quase sempre restringidas à música erudita: não existe nenhuma bolsa regular para Jazz, em qualquer instituição portuguesa, pública ou privada, para dar um exemplo.

Por outro lado o reconhecimento oficial dos cursos de música prejudica os alunos: conservatórios equiparados a ensino básico (com investimento em horas de estudo muito superior a alguns cursos superiores), cursos superiores muito recentes, com alunos muitas vezes impreparados para estudos desse nível. Está em curso a discussão pública do Regulamento do Ensino Artístico, que esperamos não ignore estes e outros problemas.

Muitas coisas boas se têm feito em Portugal no passado recente: escolas profissionais, melhores cursos superiores, acções de formação regulares. Os problemas culturais e estruturais representam um desafio maior, e só uma visão completa do fenómeno poderá ajudar a ultrapassar dificuldades, e potenciar os esforços já existentes nesta área.

Friday, March 03, 2006

Vanguarda e R&B: A Música de Ornette Coleman

Em 1959, ao abrir uma série de concertos no famoso clube nova-iorquino Five Spot, (texto escrito para a colecção "Let's Jazz In Público", Fevereiro de 2005)

Ornette Coleman chamou a atenção do mundo do jazz. Aparecendo a tocar num saxofone de plástico branco, com uma sonoridade estranha e uma linguagem musical desconcertante, baseada num suporte temático aparentemente simples, quase infantil, era acompanhado por Don Cherry no seu pocket trumpet, e uma secção rítmica composta por Charlie Haden no contrabaixo e Billy Higgins na bateria. A principal novidade era que os improvisos não obedeciam a uma série de acordes pré-definidos, como seria de esperar na época.

Com o succès de scandale que costuma marcar as revoluções artísticas, Ornette fazia história. O seu estilo não tinha precedentes, e tanto o público como a crítica não sabiam muito bem como reagir. A sua música era inclassificável. As opiniões sobre esta música oscilavam entre dois extremos: Leonard Bernstein considerou-a genial, Roy Eldridge uma fraude.
Ornette não era o único a explorar esta via. Outros, como Cecil Taylor, eram ainda desconhecidos, mas trilhavam o mesmo caminho. Claro que o estilo não nasceu do nada. Antes de ir para Nova Iorque o seu grupo teve vários anos de experimentação, em que foram reequacionados todos os aspectos do jazz, como ritmo, melodia, harmonia, sonoridade, fraseado, estrutura. A esta música, que lhe surgia naturalmente, chamaria "free jazz".

Os limites da sujeição aos acordes são explicados pelo próprio: "Using changes [série de acordes] [...] lets the audience know what you're doing. But that means you're not playing all your own music, or all the music you're playing's not yours".
Depois de utilizar vários pianistas, como Don Friedman, Paul Bley e Walter Norris, decidiu-se por retirar o piano do seu grupo para ter mais liberdade melódica, sem restrições harmónicas. Com o baterista Ed Blackwell, de Nova Orleãs, no lugar de Billy Higgins, o grupo apura o seu estilo, com o ritmo mais solto, e mais interactivo com o solista.

A secção rítmica não se limita a acompanhar. Tem uma responsabilidade acrescida no resultado final, do ponto de vista da interacção musical. Desta forma, obrigou os seus músicos a repensar a abordagem aos seus próprios instrumentos.
Para Ornette a expressão pessoal é o mais importante. O que ele gostava mais era de ver alguém fazer aquilo que melhor sabia, fosse em que área fosse. Sobre um malabarista que ele observou em frente ao Radio City Music Hall, em Nova Iorque, comentou mais tarde que fora a obra de arte mais bela que alguma vez tinha visto.

O seu estilo é muito marcado pela sua passagem por bandas de rhythm & blues, o que torna a sua música menos abstracta, mais alegre e rítmica, o que permite uma leitura mais fácil, apesar da complexidade da gramática musical. Uma afinação muito pessoal, utilização de multifónicos (produção de vários sons em simultâneo), efeitos sonoros, sonoridade poderosa, glissandi, etc., tudo contribui para o seu estilo como saxofonista. Acima de tudo ele pretende encontrar a voz humana no seu som: "You can always reach into the human sound of a voice on your horn if you're actually hearing and trying to express the warmth of a human voice". Na realidade, Ornette era mais respeitado como compositor do que como saxofonista.

Mas, como a maioria dos músicos da sua geração, Ornette começou no bebop e no blues. Nasceu em 1930 e começou a tocar aos 14 anos. Oriundo do Texas, de uma família pobre, nunca teve uma educação musical formal. Começa a tocar saxofone na escola, e desde logo com alguns amigos de infância com quem viria a gravar mais tarde: o baterista Charles Moffett, o saxofonista Dewey Redman e o trompetista Bobby Bradford. Aos 17 anos tinha já o seu próprio grupo. Segue-se uma temporada em várias bandas de rhythm & blues onde vai desenvolvendo gradualmente o seu estilo.

O que aliás lhe vai causar problemas. No Mississipi é despedido por ter ensinado um tema de bebop a alguns membros do grupo. Noutra ocasião, em Nova Orleãs, depois de um solo particularmente arrojado, alguns rufias dão-lhe uma sova e destroem-lhe o saxofone. Em 1954 vai para Los Angeles onde ganhava a vida como ascensorista, aproveitando as subidas e descidas do elevador para estudar teoria musical. Frequentava jam sessions, onde muitas vezes era hostilizado, até pelo grande saxofonista Dexter Gordon. Mas é aqui que se rodeia de músicos que acreditam na sua música e com quem ele vai apurar o seu estilo, nomeadamente três que vão ter um papel importante no seu desenvolvimento: o trompetista Don Cherry, o contrabaixista Charlie Haden e o baterista Billy Higgins.

O produtor Lester Koenig, dono da Contemporary Records, decide apostar nele. Em Somethin' Else: The Music of Ornette Coleman (1958), usa ainda uma secção rítmica convencional (Walter Norris no piano, Don Payne no contrabaixo e na bateria Billy Higgins, para além de Don Cherry no trompete), mas em Tomorrow is the Question!, experimenta pela primeira vez um grupo sem piano. Em 1959, com a ajuda de John Lewis e Percy Heath, muda-se para Nova Iorque, onde estuda temporariamente na Lenox School of Jazz (com Lewis e Gunther Schuller).

Mas o que marca verdadeiramente a mudança de estilo é a transição para a Atlantic Records que vai dar origem à fase "clássica" de Ornette, com algumas das suas gravações mais importantes e composições mais apreciadas. Desta vez pode gravar com a sua secção rítmica, com Haden e Higgins. Em 1959 grava The Shape of Jazz to Come, que contém o famoso "Lonely Woman".

Ornette sempre idolatrou Charlie Parker, do qual se considera legítimo herdeiro: "Bird would have understood us. He would have approved our aspiring to something beyond what we inherited." A sua admiração por Parker continuou, e em 1985 grava "Word for Bird".

De facto a música desta fase deve muito ao seu mentor: o espírito bebop está bem presente, a preferência por estruturas convencionais tipo blues, utilização preferencial do registo médio e agudo do saxofone. No entanto, desde então que queria fugir aos clichés desse mesmo bebop.

Em 1960 forma um octeto, que consiste no seu próprio quarteto (com Cherry, Haden e agora Ed Blackwell na bateria) ao qual juntou o quarteto do saxofonista e multi-instrumentista Eric Dolphy (com Freddie Hubbard no trompete, Scott LaFaro no contrabaixo e Billy Higgins). Com este grupo vai para estúdio e grava Free Jazz, talvez a maior referência para o movimento de vanguarda que iria florescer na década de 60. O produtor não consegue refrear o seu entusiasmo e põe na capa, para acentuar o carácter vanguardista, uma reprodução de um quadro de Jackson Pollock, e como subtítulo, escreve "a collective improvisation by the Ornette Coleman double quartet". Trata-se de facto de uma improvisação colectiva, aparentemente sem restrições, com a duração de 36 minutos ininterruptos.

Apesar de uma liberdade no improviso sem precedentes, Ornette não abandona algumas "normas" que vão marcar a sua música nos anos seguintes. Por um lado, o ritmo puro e simples, com groove, e até, por vezes, swing. Por outro a liberdade no gesto, tanto melódico como rítmico. O efeito resulta numa oposição de contrastes, e ocasionalmente aparecem temas, curtos motivos partilhados por todos, que dão à peça uma relativa unidade composicional.

Em 1965, depois de uma fase de retiro artístico, na qual procurou novas formas de se exprimir, reaparece em concertos na Europa a tocar, para além do saxofone, trompete e violino. Ornette considerava a utilização destes instrumentos uma forma de acrescentar côr à sua música.

Para além do seu trabalho como improvisador, sente-se gradualmente atraído pela composição para grupos da área da música erudita. Já tinha utilizado um quarteto de cordas num célebre concerto em Town Hall em 1962, e continuou a escrever para essa formação, mas também para quinteto de sopros ("Sounds and Forms for Wind Quintet", 1965), e também para orquestra sinfónica ("Skies of America", 1971), estreada pela London Symphony.

Em 1966 grava The Empty Foxhole com Charlie Haden e o seu filho Denardo Coleman na bateria, na altura com 10 anos de idade, e que viria a ser um dos esteios do seu grupo nas décadas seguintes. A partir desta altura a sua música parece começar a seguir uma direcção muito própria, em que se fundem elementos de R&B, rock, jazz e world music, como se pode ouvir em Science Fiction, de 1971. Ornette iria explorar, a partir desse momento, os sons da fusão.

Uma viagem a Marrocos em 1973 e a audição de vários grupos locais vai marcá-lo profundamente, justamente pela sua capacidade de juntar elementos de enorme sensualidade a uma liberdade de improvisação sem limites.

Em 1975 forma o grupo eléctrico Prime Time, em que tenta juntar a improvisação mais sofisticada e criativa ao apelo rítmico do rhythm & blues, mais característico da música pop. Paralelamente a esta inflexão, sente a necessidade de teorizar sobre o seu processo criativo. Isso dá origem ao conceito de Harmolodic Theory, ou Harmolodics. Trata-se de um conceito vago, que o próprio não sabe explicar claramente, que está supostamente na base da sua produção musical a partir dos anos 70. "Using the melody, the harmony, and the rhythm all equal." Ou, numa visão mais abstracta e certamente mais feliz: "melody, harmony, and the instrumentation of movement of forms." (Geralmente, tal como afirma o compositor Gunther Schuller, as suas afirmações sobre música são bastante obscuras, e por vezes mesmo contraditórias).

Será que Ornette deixou alguma vez de ser um músico de rhythm & blues? Talvez não, e talvez seja essa a marca que o distingue de outros representantes das correntes de vanguarda no jazz. Desde a sua fase de "bebop progressivo" à música eléctrica de Prime Time, passando pelo desbravar do free jazz (a seguir ao qual se retirou, deixando a porta aberta para outros o explorarem), Ornette nunca abandonou uma certa visceralidade na execução, apesar de já não se deitar de costas no chão e bater os pés no clímax dos seus solos, como quando imitava o saxofonista Big Jay McNeely, um dos seus ídolos da adolescência.

Numa entrevista ao New York Times, em 1981, afirmou: "People have started asking me if I'm really a rhythm-and-blues player, and I always say, why, sure. To me, rhythm is the oxygen that sits under the notes and moves them along, and blues is the coloring of those notes, how they're interpreted in an emotional way".

Ou ainda, noutra entrevista com um tom poético que marca muitas das suas intervenções sobre música: "the theme you play at the start of a number is the territory, and what comes after, which may have very little to do with it, is the adventure".
Aventura implica imprevisto, sorte, acaso, perigo, risco. Afinal de contas, as marcas da música de Ornette Coleman. E Ornette Coleman é a sua música. Nas suas palavras, a sua vida para além da música é igual à de toda a gente: "born, work, sad and happy and etc."

Wednesday, March 01, 2006

Virgil Thompson e Four Saints in Three Acts

(Conferência no Teatro São Carlos, 21 de Fevereiro de 2002)

Four Saints in three Acts foi estreado no Wadsworth Atheneum, em Hartford, em 1934. Levada à cena por uma organização chamada “Friends and Enemies of Modern Music”, revelou-se um enorme sucesso desde o início. Com um grande impacto mediático, foi apresentada na Broadway, onde ficou 8 semanas, o que constituiu um record para uma ópera.

Virgil Thompson, até então excluído do establishment musical americano, que ele aliás rejeitava, torna-se de repente no compositor mais badalado da época.

Com um cast integralmente composto por negros, o que acontecia provavelmente pela primeira vez, escolhidos pela clareza da sua dicção e forma de viver a religiosidade, que contribuiu para o succès de scandale da ópera, tornou-se num marco do modernismo americano.

A música, com a sua simplicidade aparente, foi considerada reaccionária por uns ou revolucionária por outros, numa altura em que a complexidade harmónica e rítmica estava em grande força. Mas sempre foi considerada genuinamente americana.

Esta peça mudou a história da ópera americana, sobretudo pelo impulso da sua dramaturgia, mais do que a música em si, tendo sido reconhecida por compositores tão diversos como John Cage, Philip Glass, e muitos outros.

Virgil Thompson nasceu a 25 de Novembro de 1896, em Kansas City. Desde cedo se revelou um verdadeiro prodígio intelectual, musical e literário, tendo-se tornado provavelmente no primeiro a ser simultaneamente músico, escritor e crítico profissional.

A música da sua infância vai marcar o seu estilo para sempre: canções da guerra civil, de cowboys, blues, hinos da igreja Baptista, folclore, assim como as obras de referência da música ocidental que ele estudava afincadamente.

Aos 12 anos tocava orgão nas igrejas, improvisando e impressionando a congregação com o seu estilo sofisticado. Aluno brilhante, leitor assíduo, hesita sobre se deveria ser músico ou escritor.

Em 1917 vai para Nova Iorque, onde frequenta igrejas anglicanas e católicas, fascinado pelo canto gregoriano que nelas se ouvia.
Em 1919 vai para Harvard, com uma bolsa de estudo paga pela Igreja Mormon. Estuda contraponto com um especialista em música coral e música sacra dos séc. 15 e 16.
É nesta altura que conhece as obras de Gertrude Stein e Erik Satie, que terão uma influência decisiva no seu desenvolvimento artístico.

Em 1921 viaja pela Europa, conhece Poulenc e Milhaud, e sente-se cada vez mais atraído pelo universo intelectual que aì se respira: Cocteau, Honneger, e de uma forma geral, todos os modernistas das várias áreas dessa época.

Tal como Copland, estuda com Nadia Boulanger em Paris, mas não se impressiona tanto como Elliott Carter, Roy Harris e outros que com ela também estudavam (grupo ao qual Thompson chamava “Boulangerie”).
Boulanger admirava Rameau, Couperin pela sua clareza e retórica. Nesta época Stravinsky (seu amigo) era o maior representante do neo-classicismo. Esta procura da clareza do discurso vai no entanto marcar o seu estilo.

Em seguida regressa a Boston, onde é organista na King’s Chapel (como Charles Ives), onde se fez notar improvisando com harmonias arrojadas. Conhece Maurice Grosser, de quem ficará muito próximo toda a vida (viverá com ele em Paris mais tarde).

Em 1924 começa a sua carreira profissional de escritor: o editor da revista American Mercury pede-lhe um artigo sobre Jazz, e é assim publicada a 1ª discussão séria sobre esse tema.

Regressa a Paris em 1925, desiludido com Nova Iorque e Boston. Nas suas palavras: “I prefer to starve where the food is good”.
Encontra então uma cidade que fervilha de actividade artística e criativa, assim como social e política. Fala-se de um renascimento intelectual. Conhece, através de George Antheil, Gertrude Stein, com quem estabelece uma empatia pessoal muito forte, e integra o círculo artístico e intelectual parisiense.

James Joyce ficou muito impressionado com a inteligência de Thompson, e também com a sua música (conheceram-se igualmente através de George Antheil). Propôs-lhe uma colaboração num ballet baseado no Finnegans Wake. Thompson recusou (!) por lealdade para com Gertrude Stein, que teria considerado tal colaboração uma traição.

Aliás existe um historial de rivalidades entre Stein e os outros modernistas da época:

-cortou relações com Ezra Pound depois de este ter partido acidentalmente uma cadeira em sua casa.
-T. S. Eliot reconhecia o poder da sua escrita, mas escreve, alarmado:

“...its rhythms have a peculiar hypnotic power not met with before. It has a kinship with the saxophone. If this is the future, then the future is, as it very likely is, of the barbarians. But this is the future in which we ought not be interested.”

-Admirava James Joyce, o único verdadeiramente à sua altura (na sua opinião), mas a rivalidade existia da mesma forma. Quando a editora Shakespeare and Company publicou Ulisses, Stein cortou relações com a proprietária. Nunca se conheceram, apesar de terem vivido muito perto um do outro. Só nos anos 30, com Joyce quase cego, é que eles são apresentados numa festa, ao que Joyce comenta: “How strange that we share the same quartier and have never met”. Resposta seca de Stein: “Yes”.

É nesta altura que o seu estilo começa a ser apurado. Nâo se identifica com o estilo “pesado” de Bruckner e Mahler, nem com o que ele chama “complexo germano-americano”, numa referência aos movimentos da vanguarda musical dos seus compatriotas dessa época.

É por esta razão que ele era considerado um “desalinhado” em relação a esses movimentos, por recusar métodos rígidos, ou sistemas que prendessem a sua liberdade criativa. Não esqueçamos que em 1923 Arnold Schoenberg começava a utilizar formalmente o serialismo nas suas composições.

Por isso não espanta que tenha dito a Pierre Boulez, em 1946:

“...by using a carefully thought out and complex way, you produce by 30 a handful of unforgettable works. But by then you are a prisoner of your method...so you write less and less...without freedom, no one is a master.”

Pelo contrário, acredita que as obras-primas musicais são frequentemente escritas numa fase tardia do compositor: Parsifal, Falstaff, os últimos quartetos de Beethoven, a Arte da Fuga, entre outros exemplos, comprovam esta ideia (ideia essa contrária à do seu amigo Honneger, que dizia que dos 45 para os 50, o compositor atravessa uma profunda crise, pois passa de “jovem promissor” a “vieil imbécile”).

Thompson sempre afirmou que os seus talentos foram trazidos à maturidade por Gertrude Stein e Erik Satie.

Para Satie a música tem de ser funcional em qualquer contexto: rua, cafés, circo, ou cabaré.
Da mesma forma, para Thompson, a música devia ser tão simples quanto uma conversa amigável.

Íntimo e admirador do grupo Les Six, consegue desenvolver um estilo americano, apesar de todas as influências francesas.

Quanto à influência de Stein podemos referir o efeito funcional do texto: cor, som, ritmo, técnicas inspiradas pelos quadros cubistas que ela tinha no seu apartamento da Rue de Fleurus, em Paris, uma vez que era amiga de Picasso, Marcel Duchamp, Maurice Grosser, e outros.

Na música esta ideia estará representada pela justaposição de ambientes, ritmos, harmonias e estilos.

Em 1927 Thompson começa a trabalhar na ópera. Four Saints in Three Acts (1927-1933) é a primeira das suas 2 óperas com libretto de Gertrude Stein. Thompson já tinha utilizado textos de Stein em peças anteriores para canto e piano: “Susie Asado” (1926), “Preciosilla” (1927), “Capital, Capitals” (1927). Sentia-se agora pronto a trabalhar numa peça de maior fôlego.

Thompson considerava a peça uma alegoria da vida quotidiana de pessoas criativas como eles, a aproveitar a vida moderna de Paris. Os santos estão concentrados em aspectos não materiais, como escrever uma ópera, ou passear pelo céu, no sua percurso para se tornarem santos.

Stein nunca foi explícita em relação ao seu texto. Gostava de Espanha, com o seu povo, as suas paisagens e os seus santos.

Thompson sempre acreditou que Stein se imaginava como Santa Teresa, enquanto que James Joyce, que ela pensava ser o seu único rival, era Santo Inácio. Uma leitura possível, uma vez que Stein nunca escondeu a sua rivalidade com os outros modernistas.

Apesar de nem Thompson nem Stein serem religiosos, há uma sensação de desejo de regresso ao Paraíso perdido, que Thompson sempre admitiu (há um elemento de contradição na religiosidade de Stein: sempre a negou, assim como a existência de vida no além, mas, no entanto, Alice B. Toklas, também judia, companheira de Stein, converteu-se ao catolicismo para poder juntar-se à sua “amada” depois da sua morte). Talvez por isso não haja tensão, conflito ou maldade na ópera. É um desfile de misticismo religioso, inocente e alegre, concebido por duas pessoas não religiosas.

A ópera tem um estilo muito peculiar, com uma música essencialmente diatónica, com pequenos módulos motívicos repetidos e sequências. De uma certa forma, e isso talvez explique em parte o seu sucesso, junta todos os elementos que as óperas tradicionais têm: arias, duetos, trios, momentos líricos, coro, etc., tudo isto num estilo deliberadamente idiossincrático.

Contrastando com os seus elementos tradicionais como cadências, sequências, tonalismo, motivos melódicos e rítmicos, aparecem elementos não-tradicionais tirando partido do ritmo das frases com notas repetidas muito bem articuladas.

Outro aspecto que talvez ajude a explicar o sucesso da ópera, é que ela é escrita para o público, apesar do modernismo aparentemente incompreensível do texto.

Thompson pressupõe que o seu público é educado e sofisticado. Facto ainda mais relevante considerando que ele não dissocia a obra de arte do seu público:

“It used to amuse me in Spain that it should take three children to play bullfight. One plays bull and another plays torero, while the third cries “ole!” Music is like that. It takes two people to make music properly, one man to write it, another to play it, and a third to criticize it. Anything else is just a rehearsal”.

Para Thompson, a música de Four Saints é uma homenagem a Kansas City.

A sua harmonia diatónica e cadências plagais são referências aos Hinos Protestantes, as passagens parlando referem-se ao canto da liturgia Anglo-Saxónica, o seu pot-pourri de mudanças de tempo e sonoridades remete para o universo sonoro do Midwest americano do séc. 19. Um coro Baptista com o seu harmonium (orgão de palheta), valsas, tangos, foxtrots, folk songs, música de rua, ragtime, marchas, tudo isto se ouve na ópera.

Por tudo isto, e por uma certa nostalgia do passado, fica no ar uma sensação de felicidade ao longo da peça.

De uma forma geral, as dissonâncias são evitadas, porque afectariam a energia do texto. A música é uma anotação do texto, não sugere emoções ou sentimentos que não existem no libretto. A música nunca põe em causa o ritmo nem a articulação do texto. Inversamente, sem o texto a música não tem o mesmo sentido.

Tal como nas suas canções, a clareza da prosódia nunca é posta em causa. Partilhava, com Samuel Barber num estilo muito diferente, a paixão da linguagem. O segredo da escrita de Four Saints reside na forma como o texto é musicado. Nas suas palavras:

“My hope in putting Gertrude Stein to music had been to break, crack open, and solve for all time anything still waiting to be solved, which was almost everything, about English musical declamation. My theory was that if a text is set correctly for the sound of it, the meaning will take care of itself. And the Stein texts, for prosodizing in this way, were manna. With meanings already abstracted, or absent, or so multiplied that choice among them was impossible, there was no temptation toward tonal illustration, say, of birdie babbling by brook or heavy heavy hangs my heart. You could make a setting for sound and syntax only, then add, if needed, an accompaniment equally functional. I had no sooner put to music after this recipe one short Stein text than I knew I had opened the door.”